sexta-feira, 11 de março de 2011

A NATUREZA DO PRIMEIRO PECADO OU DA QUEDA DO HOMEM- LOUIS BERKHOF

1. SEU CARÁTER FORMAL. Pode-se dizer que, sob uma perspectiva puramente formal, o primeiro pecado do homem consistiu em comer ele da árvore do conhecimento do bem e do mal. Não sabemos que espécie de árvore era. Poderia ser uma tamareira ou uma figueira ou qualquer outra árvore frutífera. Nada havia de ofensivo no fruto da árvore como tal. Comê-lo não era pecaminoso per se, pois não era uma transgressão da lei moral.

Quer dizer que não seria pecaminoso, se Deus não tivesse dito: "da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás". Não há opinião unânime quanto ao motivo pelo qual a árvore foi denominada do conhecimento do bem e do mal. Uma opinião das mais comuns é que a árvore foi chamada assim porque o comer do seu fruto infundiria conhecimento prático do bem e do mal; mas é difícil sustentar isso face à exposição bíblica segundo a qual, comendo-o, o homem passaria a ser como Deus, no conhecimento do bem e do mal, pois Deus não comete pecado e, portanto, não tem conhecimento prático dele. É muito mais provável que a árvore foi denominada desse modo porque fora destinada a revelar (a) se o estado futuro do homem seria bom ou mau; e (b) se o homem deixaria que Deus lhe determinasse o que era bom ou mau, ou se encarregaria de determiná-lo por si e para si. Mas, seja qual for a explicação que se dê do nome, a ordem de Deus para não comer do fruto da árvore serviu simplesmente ao propósito de pôr à prova a obediência do homem. Foi um teste de pura obediência, visto que Deus de modo nenhum procurou justificar ou explicar a proibição. Adão tinha que mostrar sua disposição para submeter a sua vontade à vontade do seu Deus com obediência implícita.

2. SEU CARÁTER ESSENCIAL E MATERIAL. O primeiro pecado do homem foi um pecado típico, isto é, um pecado no qual a essência real do pecado se revela claramente. A essência desse pecado está no fato de que Adão se colocou em oposição a Deus, recusou-se a sujeitar a sua vontade à vontade de Deus de modo que Deus determinasse o curso da sua vida; e tentou ativamente tomar a coisa toda das mãos de Deus e determinar ele próprio o futuro. O homem, que não tinha absolutamente nenhum direito para alegar a Deus, e que só poderia estabelecer algum direito pelo cumprimento da condição da aliança das obras, desligou-se de Deus e agiu como se possuísse certos direitos contra Deus. 

A idéia de que o mandado de Deus era de fato uma infração dos direitos do homem parece que já estava na mente de Eva quando, em resposta à pergunta de Satanás, acrescentou as palavras, "nem tocareis nele", Gn 3.3. Evidentemente ela quis salientar o fato de que a ordem não fora razoável. Partindo da pressuposição de que tinha certos direitos contra Deus, o homem promulgou o novo centro de operações, que viu nele próprio, onde agir contra o seu Criador. Isto explica o seu desejo de ser como Deus e a sua dúvida quanto às boas intenções de Deus ao dar-lhe a ordem. Naturalmente podem distinguir-se diferentes elementos do seu primeiro pecado. No intelecto revelou-se como incredulidade e orgulho, na vontade, como o desejo de ser como Deus, e nos sentimen¬tos, como uma ímpia satisfação ao comer do fruto proibido.

O SERVO NÃO ESTÁ ACIMA DE SEU SENHOR- JOHN MacArthur

Jesus disse em Mateus 10.24: "Não é o discípulo mais do que o mestre, nem o servo mais do que o seu senhor". Esta dupla declaração é axiomática; não precisa ser posta à prova. Na primeira frase, presume-se que o discípulo escolhe seu mestre; e na segunda, supõe-se que o senhor compra o escravo ou servo. O que Jesus está dizendo é que o primeiro princípio do discipulado é a nossa submissão a Ele. Nossa vontade está em proeminência na relação discípulo/mestre - escolhemos aprender sob a direção do mestre. A soberania de Jesus está em evidência no paradigma servo/senhor - Ele nos escolhe para sermos seus servos. Esta é a dualidade básica inerente na doutrina da salvação. Em qualquer uma das duas situações, é óbvio que temos de ser submissos.

A relação do discípulo com o mestre pode ser expressa positivamente de diversas maneiras à medida que buscamos ser semelhantes a Cristo (vide Lc 6.40; Cl 3.16; 1 Jo 2.6). Entretanto, no grande contexto de Mateus 10, Jesus relata as verdades do discipulado de um ponto de vista negativo. O servo não está livre da perseguição e da oposição tanto quanto Jesus não o estava. Este fato evidencia-se à medida que Jesus prepara os Doze para o ministério alhures, e os avisa da vinda inexorável da hostilidade.

Esta mesma expectativa aplica-se a nós também. Quanto mais semelhantes a Jesus nos tornamos, mais o mundo nos tratará como o tratou. Se não estivermos sofrendo muito por amor a Ele, então talvez seja hora de examinarmos a nós mesmos (2 Co 13.5).

Se quisermos ser seguidores de Jesus, sob todos os aspectos, devemos estar prontos a pagar o preço. De fato, Mateus 10.25, diz: "Basta ao discípulo ser como seu mestre". Isto significa que devemos perseguir constantemente o alvo de ser como Jesus (cf. Fp 3.14-17). Não nos excedamos no afã de termos maiores privilégios do que tinha Jesus, nem procuremos meios de fugir às necessidades e adversidades que Ele enfrentou. Quando nossa semelhança com Ele for como deve ser, tornar-se-á possível triunfar no sofrimento.

A DOUTRINA DE CRISTO ANTES DA REFORMA- LOUIS BERKHOF

Relação entre Antropologia e Cristologia

Há uma relação muito estreita entre a doutrina do homem e a de Cristo. A primeira trata do homem, criado à imagem de Deus e dotado de verdadeiro conhecimento, justiça e santidade, mas que, pela voluntária transgressão da lei de Deus, despojou-se da sua verdadeira humanidade e se transformou em pecador. Ela mostra o homem como uma criatura de Deus altamente privilegiada, trazendo ainda alguns traços da sua glória original, mas, todavia, uma criatura que perdeu os seus direitos de nascimento, sua verdadeira liberdade e sua justiça e santidade originais. Significa que a doutrina dirige a atenção não apenas, nem primeiramente, à condição do homem como criatura, mas, sim, à sua pecaminosidade. Salienta a distância ética que há entre Deus e o homem, distância resultante da queda do homem e que, nem o homem nem os anjos podem cobrir, e, como tal, é virtualmente um grito pelo socorro divino. A cristologia é em parte a resposta a esse grito. Ela nos põe a par da obra objetiva de Deus em Cristo construindo uma ponte sobre o abismo e eliminando a distância. A doutrina nos mostra Deus vindo ao homem para afastar as barreiras entre Deus e o homem pela satisfação das condições da lei em Cristo, e para restabelecer o homem em sua bendita comunhão. A antropologia já dirige a atenção à provisão da graça de Deus para uma aliança de companheirismo com o homem que prove uma vida de bem-aventurada comunhão com Deus; mas a aliança só é eficiente em Cristo e por meio de Cristo. E, portanto, a doutrina de Cristo como Mediador da aliança deve vir necessariamente em seguida. Cristo, tipificado e prenunciado no Antigo Testamento como o Redentor do homem, veio na plenitude do tempo, para tabernacular entre os homens e levar a efeito uma reconciliação eterna.

A Doutrina de Cristo antes da Reforma

1. ATÉ O CONCILIO DE CALCEDÔNIA. Na literatura cristã primitiva Cristo sobressai como humano e divino, como o Filho do homem, mas também como o Filho de Deus. Seu caráter sem pecado é defendido, e ele é considerado como legítimo objeto de culto. Naturalmente, o problema suscitado por Cristo, como ao mesmo tempo Deus e homem, e as dificuldades envolvidas em tal concepção, não foram plenamente sentidos pela mente cristã dos primeiros tempos, e só assomaram a ela à luz da controvérsia. Era simplesmente natural que o Judaísmo, com a sua forte ênfase ao Monoteísmo, exercesse considerável influência sobre os primeiros cristãos, de extração judaica. Os ebionitas (ou parte deles) sentiram-se constrangidos, no interesse do Monoteísmo, a negar a divindade de Cristo. Eles o consideravam como simples homem, filho de José e Maria, qualificado em seu batismo para ser o Messias, pela descida do Espírito Santo sobre ele. Havia outros na Igreja Primitiva cuja doutrina sobre Cristo foi elaborada sobre linhas semelhantes. Os alogi (álogos ou alogianos), que rejeitavam os escritos de João por que entendiam que a sua doutrina do Logos está em conflito, com o restante do Novo Testamento, também viam em Jesus apenas um homem, conquanto miraculosamente nascido de uma virgem, e ensinavam que Cristo desceu sobre ele no batismo, conferindo-lhe poderes sobrenaturais. No essencial, esta era também a posição dos monarquistas dinâmicos. Paulo de Samosata, seu principal representante, distinguia entre Jesus e o Logos. Ele considerava aquele como um homem igual a todos os demais, nascido de Maria, e este como razão impessoal divina, que fez sua habitação em Cristo num sentido preeminente, desde a ocasião do seu batismo, e assim o qualificou para a sua grande tarefa. Em vista dessa negação, fazia parte da função dos primitivos apologetas a defesa da doutrina da divindade de Cristo.

Se havia alguns que sacrificavam a divindade pela defesa da humanidade de Cristo, havia outros que invertiam a ordem. Os gnósticos foram profundamente influenciados pela concepção dualista dos gregos, em que a matéria, entendida como inerentemente má, é descrita como completamente oposta ao espírito; e por uma tendência mística para considerar as coisas terrenas como representações alegóricas dos grandes processos redentores cósmicos. Rejeitavam a idéia de uma encarnação, de uma manifestação de Deus em forma visível, visto que isto envolveria um contato direto do espírito com a matéria. Harnack diz que a maioria deles considerava Cristo como um Espírito consubstanciai com o Pai. Conforme alguns, ele desceu sobre o homem Jesus quando do seu batismo, mas o deixou de novo antes da sua crucificação; ao passo que, segundo outros, ele assumiu um corpo meramente fantasmagórico. Os monarquistas modalistas também negavam a humanidade de Cristo, em parte no interesse da sua divindade, e em parte para preservar a unidade do Ser divino. Viam nele apenas um modo ou uma manifestação do Deus único, em quem não reconheciam nenhuma distinção de pessoas. Os chamados pais alexandrinos e antignósticos empreenderam a defesa da divindade de Cristo, mas em seu trabalho de defesa não evitaram inteiramente o erro de descrevê-lo como subordinado ao Pai. Mesmo Tertuliano ensinava uma espécie de subordinação, mas especialmente Orígenes, que não hesitava em falar de uma subordinação quanto à essência. Isto veio a ser um ponto de partida para o Arianismo, no qual se faz distinção entre Cristo e o Logos como a razão divina, e Cristo é apresentado como uma criatura pretemporal, super-humana, a primeira das criaturas, não Deus e, todavia, mais que homem. Atanásio contestou a Ario e defendeu vigorosamente a posição de que o Filho é consubstanciai Pai e da mesma essência do Pai, posição que foi oficialmente adotada pelo Concilio de Nicéia, em 325. O Semi-arianismo propôs uma via media, declarando que a essência do Filho é semelhante à do Pai.

Quando a doutrina da divindade do Filho foi estabelecida oficialmente, surgiu, como é natural, a questão quanto à relação mútua das duas naturezas de Cristo. Apolinário ofereceu uma solução ao problema. Aceitando a concepção tricotômica grega, o homem como consistindo de corpo, alma e espírito, ele tomou a posição de que o Logos assumiu o lugar do espírito (pneuma) no homem, que ele considerava a sede do pecado. Seu principal interesse era assegurar a unidade da pessoa de Cristo, sem sacrificar a sua real divindade; e também resguardar a impecabilidade de Cristo. Mas o fez em detrimento da completa humanidade do Salvador e, conseqüentemente, a sua posição foi explicitamente condenada pelo Concilio de Constantinopla, em 381. Uma das coisas pelas quais Apolinário lutava era a unidade da pessoa de Cristo. Que isso realmente corria perigo viu-se claramente na posição assumida pela escola de Antioquia, que exagerava a distinção das duas naturezas de Cristo. Theodoro de Mopsuéstia e Nestório acentuavam a completa humanidade de Cristo e entendiam que a habitação do Logos nele era apenas uma habitação moral, como a que os crentes também gozam, embora não no mesmo grau. Eles viam em Cristo um homem lado a lado com Deus, em aliança com Deus, compartindo o propósito de Deus, mas não unido a ele numa unidade de vida pessoal única - viam nele um Mediador que consistia de duas pessoas. Em oposição a eles, Cirilo de Alexandria salientava fortemente a unidade da pessoa de Cristo e, na opinião dos seus oponentes, negava as duas naturezas. Embora com toda a probabilidade esses oponentes o tenham entendido mal, Eutico e os seus seguidores certamente recorrem a ele quando assumiram a posição de que a nature¬za humana de Cristo foi absorvida pela divina, ou que as duas se fundiram resultando numa só natureza, posição que envolvia a negação das duas naturezas de Cristo. O Concilio de Calcedônia, em 451, condenou esses dois conceitos e manteve a crença na unidade da pessoa, como também na dualidade das naturezas.

2. APÓS O CONCÍLIO DE CALCEDÔNIA. Por algum tempo o erro eutiquiano continuou com os monofisitas e monotelitas, mas finalmente foi dominado pela Igreja. E o perigo de que a natureza humana de Cristo fosse considerada como inteiramente impessoal foi afastado por Leôncio de Bizâncio, quando demonstrou que ela não é impessoal, mas impessoal, tendo a sua subsistência pessoal na pessoa do Filho de Deus. João de Damasco, com quem a Cristologia do Oriente alcançou o seu desenvolvimento máximo, acrescentou a idéia de que há uma circumincessão do divino e do humano em Cristo, uma comunicação dos atributos divinos à natureza humana, de modo que esta é deificada e também podemos dizer que Deus sofreu na carne. Ele mostra a tendência de reduzir a natureza humana à posição de mero órgão ou instrumento do Logos, se bem que admite que há cooperação das duas naturezas, e que a pessoa única exerce ação e vontade em cada natureza, embora a natureza humana esteja sempre sujeita à divina.

Na Igreja Ocidental, Felix, bispo de Urgel, defendeu o Adocionismo. Ele considerava Cristo, quanto a sua natureza divina, isto é, o Logos, como o unigênito Filho de Deus no sentido natural, mas considerava Cristo, em seu lado humano, como um Filho de Deus meramente por adoção. Felix procurou preservar a unidade da pessoa salientando o fato de que, desde o momento da sua concepção, o Filho do homem foi absorvido na unidade da pessoa do Filho de Deus. Fez-se, assim, distinção entre a filiação natural e a adotiva, e esta não começou com o nascimento natural de Cristo, mas teve início por ocasião do seu batismo e se consumou em sua ressurreição. Foi um nascimento espiritual que fez de Cristo o Filho adotivo de Deus. Mais uma vez a Igreja viu a crença na unidade da pessoa de Cristo ameaçada por esse conceito e, portanto, ele foi condenado pelo Sínodo de Franckfurt, em 794.

A Idade Média acrescentou muito pouca coisa à doutrina da pessoa de Cristo. Devido a várias influências, como as de ênfase à imitação de Cristo, das teorias sobre a expiação, e do desenvolvimento da doutrina da missa, a Igreja se apegou fortemente à plena humanidade de Cristo. "A divindade de Cristo", diz Mackintosh, "passou a ser vista mais como o coeficiente infinito elevando a ação e a paixão humanas a um valor infinito". E, contudo, alguns dos escolásticos expuseram em sua Cristologia um conceito docético de Cristo. Pedro Lombardo não hesitava em dizer que, com relação a sua humanidade, Cristo não era absolutamente nada. Mas este Niilismo foi condenado pela Igreja. Alguns novos pontos foram salientados por Tomás de Aquino. Segundo ele, a pessoa do Logos tornou-se composta na encarnação, e sua união com a natureza humana "impediu" esta última de chegar a ter uma personalidade independente.

A natureza humana de Cristo recebeu dupla graça em virtude de sua união com o Logos, (a) a gratia unionis (graça da união), que lhe comunicou uma dignidade especial, de modo que até se tornou objeto de culto, e (b) a gratia habiíualis (graça habitual), que a mantinha em sua relação com Deus. O conhecimento humano de Cristo era duplo, a saber, um conhecimento infuso e um conhecimento adquirido. Há duas vontades em Cristo, mas a causalidade última pertence à vontade divina, à qual a vontade humana está sempre sujeita.

JESUS-O MESMO PARA SEMPRE- GERHARDUS VOS

Um Sermão sobre Hebreus 13:8


"Jesus Cristo, ontem e hoje, é o mesmo e o será para sempre. "

Estas palavras da epístola estão diretamente ligadas ao que imediatamente as precede. Embora não haja nenhuma partícula de conexão, pode existir apenas pouca, ou nenhuma dúvida, de que o autor deseja demonstrar a razão para a exortação que ele há pouco havia dirigido aos leitores:

"Lembrai-vos daqueles que vos lideraram, que vos falaram a palavra de Deus, a fé dos quais imitai, atentando para a sua maneira de viver".

A exortação não deve ser entendida nesse sentido — de que os hebreus deveriam imitar seus antigos mestres aderindo à sua mesma fé — pela razão de que a doutrina cristã é, por todos os tempos, inalterável.

Naquele caso, o termo "Jesus Cristo" estaria representando o conteúdo do próprio Cristianismo, no sentido de doutrina a respeito de Cristo. Certamente, é muito mais natural a utilização do termo "Jesus Cristo" em seu sentido pessoal, o qual já havia ocorrido em outros pontos da epístola, e encontrar aqui, apropriadamente, a afirmação da imutabilidade, tanto do caráter, quanto da vida do Salvador.

Assim, a questão que se coloca, é qual a relação existente entre esta imutabilidade pessoal de Jesus Cristo e o dever do leitor de imitar a fé de seus antigos mestres, considerando sua maneira de viver.

Uma vez que esta relação não é aparente, alguns têm pensado ser necessária uma releitura dos versículos cinco e seis, possibilitando uma conexão com aquilo que o autor cita do Antigo Testamento: "Porque Ele tem dito: De maneira alguma te deixarei, nunca jamais te abandonarei. Assim, afirmamos confiantemente: O Senhor é o meu auxílio, não temerei. Que me poderá fazer o homem?" Desta forma, este versículo adicionaria mais uma razão ao que foi dito: Nós podemos confiar que o Senhor não nos deixará ou abandonará; podemos considerá-lo nosso auxílio, não precisamos temer, uma vez que Jesus Cristo é o mesmo ontem e hoje, e o será para sempre.

Acerca da Vida

Mas isto também é menos plausível. Quando olhamos claramente as palavras imediatamente precedentes, percebemos que a conexão, conquanto não aparente a princípio, possui, não obstante, um caráter convincente.

O autor vinha falando, não meramente de maneira genérica a respeito da vida e da fé de seus antigos líderes, mas particularmente a respeito de suas vidas. E isto, não no sentido dos efeitos que aquelas vidas causariam a si mesmo em seu estado futuro, ou para outros em nosso estado presente; se refere à maneira que aquelas vidas atingiram o seu fim, a maneira a qual, na hora de sua morte, elas exibiram e triunfantemente mantiveram sua fé.

E muito provável que o fim da vida, nesta situação, refira-se ao fim do martírio. Os mestres, que pregaram a eles as palavras de Deus, selaram e coroaram sua profissão de fé em Jesus Cristo com o testemunho de seu sangue. Neste ponto, o autor trata o martírio não apenas como uma mera exibição de fé, mas como o ideal da carreira cristã.

As palavras utilizadas no original provam que o assunto da vida não se trata do término da vida biológica, mas do clímax da vida espiritual. Não se fala aqui do telos tes %oes, mas sim do ekbasis ten anastrophes. Este é a razão porque uma consideração a respeito do clímax da vida dos mestres no martírio pode apoiar, perante os leitores, a idéia de um modelo que poderá modelar a fé destes.

O que o autor quer dizer, imagino, é simplesmente isto: Contemplem o martírio daqueles a quem vocês testemunharam, o qual, é o cume daquilo que a fé pode alcançar; então, mantenham sua fé desta forma; desenvolvam sua caminhada desta maneira também, e quando a necessidade chegar, não será algo tão grande e difícil descansar suas vidas na causa de Cristo, mas algo natural, conseqüência de toda uma prévia conversaçã cristão, previamente inspirada pelo pensamento de abnegação, sofrimento e renúncia voluntária.
O Caráter Heróico da Fé

Há de maneira geral um esforço heróico nesta concepção de fé, da maneira que o autor a coloca, especialmente no capítulo onze da epístola. Neste ponto, o martírio também aparece como uma exibição suprema do espírito da fé. A totalidade do catálogo dos grandes exemplos de fé adentra na descrição daqueles que foram torturados, e que não aceitariam o seu livramento, que experimentaram escárnios e açoites, e até cadeias e prisões; que foram apedrejados e serrados, os quais deram testemunho através de sua fé.

Desta forma, há concordância também com o que precede no capítulo 12, onde o autor exorta os cristãos hebreus a seguirem os passos daquela vasta nuvem de testemunhas, lembrando-os que eles ainda não haviam resistido até o sangue e exortando-os ao exercício da paciência em meio ao sofrimento, graça fundamental que ainda estava em falta.

Agora, isto se coloca como um motivo para o cultivo de tão heróica fé. Uma fé de tal maneira familiarizada com a idéia de dificuldade, que poderia, sem diminuir, enfrentar a crise do martírio como um assunto natural em seu curso. É com um pensamento de cultivo desta fé que o autor diz aos seus leitores: "Jesus Cristo é o mesmo hoje, ontem e para sempre." Isto significa, antes de tudo, que a mesma graça daqueles que pregaram a vocês as palavras de Deus, que não somente resignadamente, mas também de maneira alegre e triunfante entregaram suas vidas — esta mesma graça está a disposição de vocês.

Se, como alguns escritores modernos pensam, a epístola foi escrita para um grupo de cristãos da cidade de Roma, ela poderia ser uma referência ao martírio de Paulo, e possivelmente de Pedro (ao menos se a frase "que vos falaram as palavras de Deus" não seja entendida como a primeira pregação do evangelho).

Naquele caso, o lembrete surgiria com uma peculiar força e riqueza de associação, uma vez que significaria, de maneira resumida: lembrem-se de que o Cristo, em cuja força os grandes líderes apostólicos lutaram suas batalhas e ganharam suas coroas, continua o mesmo hoje, e que também pode animá-los a atingir uma igualmente gloriosa e triunfante bravura em suas batalhas contra o mundo.

Mas seja como for, mesmo que os seus antigos líderes não tenham sido tão ilustres quanto Pedro e Paulo, de qualquer forma, o apelo à imutabilidade de Cristo ainda teria grande força em sua conexão. E nos dá discernimento da condição espiritual dos cristãos hebreus para os quais a epístola é endereçada.

É evidente que após o entusiasmo inicial dos primeiros dias de profissão de fé cristã destes crentes, seguiu-se um período de reação, no qual o seu zelo começara a decair; sua coragem começara a minguar; sua esperança diminuíra, uma vez que eles haviam perdido a força da fé que os mantivera nos mesmos lugares altos do início de sua caminhada.

Por toda a epístola podemos sentir que foi isto que encheu o autor de preocupação, uma vez que ele possuía discernimento de que isto não era meramente um sintoma de um deplorável retrocesso em suas realizações cristãs, mas sim, por observar aí uma predição da apostasia.

Era verdade àquela época, assim como é hoje, que estritamente falando, não há como permanecer parado em nossa vida espiritual; precisamente pelo fato de que se trata aqui de vida — algo crescente, em desenvolvimento constante — e o seu progresso é algo de sua própria essência.

A suspensão deste processo denota que algo está errado, que um declínio se estabeleceu, o qual, não parado a tempo, pode ser fatal. Não existe Cristianismo imóvel. Somente a aparência externa de cristianismo que pode parecer imóvel — interiormente, as forças e processos estão sempre trabalhando, em uma, ou outra direção.

Quão apropriado, portanto, se torna para o autor, em seu estado de abatimento e depressão, desenrolar perante eles não somente os anais da história do Antigo Testamento, em cuja fé, brilha de forma total; não meramente demonstrar perante eles o exemplo de seus antigos mestres ou seus passados nobres, mas acima de tudo, apontar a Jesus Cristo, o mesmo ontem, hoje e para sempre, uma vez que é a fé nEle que deveria encorajá-los sobre todo perigo de flutuação, trazendo suas almas oscilantes de volta à mesma força e coragem que já havia os pertencido outrora.

E talvez deva haver um elemento específico em seu desânimo espiritual que toma a referência à imutabilidade de Cristo ainda mais pertinente do que já tem sido indicado. E muito provável que eles tivessem sentido, de maneira profunda, a perda daqueles líderes que vieram antes deles e que foram, perante os leitores e o mundo, exemplos vivos do ideal cristão, comunicando a eles algo de sua própria fé, atraindo-os para a sua mesma coragem e alegria no crer.

Mas agora, estes pais em Cristo haviam partido, e eles foram forçados a depender tão somente de suas próprias fontes espirituais e, tomados pela desconfiança de si mesmos, não souberam para onde se voltar, em busca daquela inspiração e orientação das quais haviam se tomados tão dependentes.

Também por esta razão o autor os lembra que, apesar dos homens poderem ir e vir; que enquanto o suporte humano sobre o qual a fé muitas vezes se apoia é, por sua própria natureza, transitória, apesar disso tudo, Jesus Cristo permanece com sua igreja, através de todas as mudanças e vicissitudes do tempo, o mesmo ontem, hoje e eternamente, sempre acessível. Sendo, independente das condições, confiável, o próprio objeto de fé, a única fonte segura de confiança, uma vez que Ele mesmo é a eterna certeza sobre a qual a fé necessita repousar.

A Imutabilidade de Cristo

Esta é uma verdade sobre a qual podemos descansar tranquilamente, especialmente na presente época da história da igreja. E fácil em nossos dias sentir que o povo de Deus está, mais do que nunca, sem a presença de grandes líderes, como alguns conhecidos pelas gerações passadas, homens de Deus excepcionais, que pelo extraordinário poder de sua fé, e pelo poder de seus discursos, reuniam em sua volta o exército dos crentes, inspirando-os com nova coragem, e prevenindo o inimigo de obter vantagem sobre eles.

Contudo, caso não agrade a Deus a idéia de levantar tais homens no presente, ou se o agrada, em Sua sabedoria, tirá-los de nós, não deveríamos novamente ser tentados por isso à descrença e ao desânimo.

Devemos nos lembrar da verdade a qual o autor relembra aos seus leitores - que Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e para sempre, que mesmo quando seu povo simples parecer mais destituído de liderança, os maiores líderes sempre estarão lá. Por nenhum momento ele deixa o leme, ou abandona, seja um simples crente, seja a igreja como um todo, à deriva, nas ondas do mundo.

Talvez isto nos explique o porquê do autor ter utilizado as duas preposições juntas, sem uma partícula de conexão. Primeiro: "Lembrai-vos dos vossos pastores, que vos falaram a palavra de Deus, a fé dos quais imitai, atentando para a sua maneira de viver." E depois: "Jesus Cristo é o mesmo, ontem, e hoje, e eternamente." A correta disposição de mente é, ao mesmo tempo, honrar e apreciar todos os dons e graças que Deus tem concedido a homens eminentes, a serviço da Igreja, para honrá-los, especialmente por intermédio da sua imitação, lançando a âncora da nossa fé no futuro do Reino de Deus no mundo na própria pessoa de Jesus Cristo: lembrando-se dos homens do passado, mas confiando somente nele, o qual tem o poder da vida eterna e permanece em um presente interminável.

A Imutabilidade do Filho de Deus

Tal então parece ser o significado primário das palavras, como determinado pela conexão. Mas não podemos nos esquecer que por trás destas palavras se encontra todo o ensino peculiar da epístola acerca do respeito à pessoa e obra de Cristo. E isto ocorre somente porque o autor supõe que seus leitores já tivessem assimilado a essência de sua explanação, esperando que seu apelo fosse persuasivo em relação aos seus destinatários.

Eles iriam entender que Jesus Cristo necessita de fato ser o mesmo ontem, hoje e para sempre porque eles se lembraram de quem Ele era, e em quais termos ele tinha sido descrito por meio de quase toda a epístola. Ele era o Filho de Deus, o esplendor da glória divina, a expressão exata do ser de Deus. A Ele o autor havia aplicado as palavras do Salmo 102: "Porém tu és o mesmo, e os teus anos nunca terão fim. Os filhos dos teus servos continuarão, e a sua semente ficará firmada perante ti. (w. 26, 27).)

A Ele, então, pertence o atributo da imutabilidade, o qual é inerente à própria concepção de divindade. De fato, as várias formas de palavras — o mesmo ontem, hoje e para sempre — nos lembra de maneira vívida a sublime descrição que o livro de Apocalipse dá do próprio Deus como aquele que é, que era e que será, preenchendo com seu ser todas as categorias possíveis de tempo, uma vez que é etemo; e também nos relembra daquela não menos sublime descrição, a qual encontramos no mesmo livro, de ambos, Deus e Cristo, como sendo o Alfa e Omega, o primeiro e o último, o começo e o fim.

Por toda a epístola, Cristo pertence ao mundo celestial, no qual tudo carrega o caráter de imutável, permanente. A este respeito, o ensino da epístola permanece muito próximo daquele a nós ministrado pelo próprio Senhor, sobre si mesmo, no quarto evangelho, onde a ênfase continuadamente colocada neste fato — de que Jesus vem do alto, e não de baixo, e como conseqüência, ele se mantém livre de todos os relativismos, imperfeições e vicissitudes que necessariamente pertencem a tudo aquilo que possui uma natureza terrena. Cristo é a verdade, a realidade do Deus encarnado e, portanto, podemos sustentar com ele o mesmo relacionamento, endereçar a ele a mesma religiosidade que temos com o próprio Deus.

Neste momento, isto não é apenas uma mera especulação da epístola, tão pequena quanto é uma mera especulação do ensino de João sobre Deus. Quanto a nós, devemos observar, em segundo lugar, que toda a belíssima representação que o autor nos dá da obra redentora de Cristo, tanto como profeta quanto Sumo Sacerdote, é a conseqüência direta desta concepção de Cristo como uma pessoa eterna e divina. Se retirarmos isto, deixaremos de fora todo o pensamento preocupado com a figura de Cristo como o Salvador, não apenas porque seria impossível a nossa aproximação junto a Ele em espírito religioso, fossem seus atribuídos subtraídos dele, mas tanto mais por ser impossível a ele se aproximar de nós, nos cercando, üuminando e expiando para nós, nos trazendo de volta a Deus se Ele não houvesse enraizado a sua própria vida no solo da divindade e da eternidade.

Não há um só escrito em todo o Novo Testamento que ensine, de maneira tão enfática, a absoluta necessidade da natureza divina de Cristo para a obra de redenção como a epístola aos Hebreus. Ele é o clímax de toda a profecia, uma vez que é o Filho, que não fala a verdade de uma maneira limitada, ou em uma porção, como viera aos pais, pelos profetas, mas que a diz ecoando a voz do próprio Deus, e então, o fala a todos os tempos, pelo qual nós podemos dizer, não somente dele, mas de seu discurso — é o mesmo ontem, hoje e para sempre, o mesmo em autoridade e em frescor, o mesmo poder vital, como o que primeiro ressoou por toda a eternidade.

Um Sacerdócio Imutável

E o mesmo é igualmente a mais literal verdade de sua obra sacerdotal. No que também temos de reconhecer a impressão do que ele é. O conjunto completo da epístola é repleto deste pensamento. Não é necessário indicar mais do que as principais linhas pela qual esta profunda e esplêndida exposição do sacerdócio de Cristo se coloca. O tema central a partir do qual o autor começa e para o qual ele retoma é: ele é um sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedeque. E o que isso significa é-nos mostrado como um tipo. Quando Melquisedeque surge nas Escrituras como um sacerdote sem nenhuma derivação ancestral, ou sem antecessores no cargo, mas somente mediante a sua própria personalidade real, isto ocorre somente pela inspiração, feito como o Filho de Deus, o qual ele deveria prefigurar.

Cristo qualifica o seu sacerdócio a partir da sua natureza divina, assim como por sua natureza humana, uma vez que não possuindo começo de dias, e tampouco fim de vida, ele continua a ser um sacerdote para sempre. Ele tem o seu sacerdócio imutável, pois o poder de uma vida eterna existe nele mesmo. Ele transcende e revoga, por seu rninistério, o sacerdócio levítico, porque ele, a pessoa imortal, assumiu todas as suas funções e prerrogativas em um sentido infinitamente superior. Através do Espírito eterno, ele ofereceu-se sem defeito a Deus e, por isso, aperfeiçoou para sempre, por um só sacrifício, todos aqueles que são santificados. Por último, sua eternidade e sacerdócio são vistos mais estreitamente unidos nisto: no fato de que a parte principal da quitação das suas funções sacerdotais ocorre, de acordo com a nossa epístola, no céu, onde ele ministra no seu estado glorificado.

Os dois são tão inseparáveis que o autor simplesmente diz: "Se estivesse na Terra, ele não seria um sacerdote de forma alguma". Mas estando no céu, ele é o sacerdote, e seu estado sacerdotal partilha da imutabilidade que é a lei suprema deste mundo celestial. Ele é um sacerdote sobre o seu trono (para usar uma expressão Antigo Testamento) e seu trono, como vimos, permanece eternamente, desde que se encontra à destra do trono do próprio Deus. Mesmo quando o seu trabalho sacerdotal, no sentido específico da aplicação da sua redenção, tiver cessado, quando já não será necessário para ele fazer intercessão ou invocar o seu mérito para nós, uma vez que o pecado, e todas as suas conseqüências, já tiver sido removido - mesmo assim ele continuará a ser o eterno Sumo Sacerdote da humanidade, oferecendo a Deus, em união, a adoração e o louvor da raça redimida da qual ele é o cabeça.

Um Salvador Compassivo

É necessário manter isto em mente porque muitas vezes enfatizamos o outro lado em demasia. E inquestionável que sua experiência terrena como um fraco e limitado homem de dores era necessária para qualificá-lo para seu ofício. Sem isto, ele não poderia ter o conhecimento experimental de nossas tentações e a compaixão, a segurança da qual nos é tão preciosa e consoladora nos tempos de provações e aflições. Mas não nos esqueçamos, irmãos, que está muito longe da idéia do autor entender a sua compassividade como que trabalhando por nós de uma forma meramente subjetiva, assim como a compaixão de uma pessoa que nos ajuda, apesar dela não poder fazer nada mais de que expressar um sentimento de companheirismo em relação às nossas enfermidades. Não! A simpatia de Cristo trabalha junto a nós com todas as suas infinitas fontes, as quais são colocadas a nossa disposição pela sua divina natureza e pela sua humanidade gloriosa.

É a compaixão de uma pessoa que é a mesma ontem, hoje e para sempre; de alguém que se lembra, de uma maneira que somente uma natureza humana absolutamente perfeita poderia se lembrar, de tudo aquilo pelo qual passou na Terra, enquanto orava e suplicava com copioso pranto e lágrimas. E a compaixão de alguém que não diferencia o sentir por nós e agir sobre nós, tendo-os como uma única coisa. De alguém que tem acesso a cada momento, a cada situação que o crente possa se encontrar, por maior a angústia ou a perplexidade que ela possa trazer, assim como a qualquer recôndito de nosso coração, do medo mais secreto, a mais silenciosa tristeza, os quais não podemos compartilhar com mais ninguém.

E depois, é a compaixão daquele que nunca se cansará de nossas queixas, uma vez que nele há uma fonte inesgotável de misericórdia, a qual é adequada para o consolo dos crentes de todas as eras, e é livremente derramada hoje assim como foi na era dos cristãos hebreus, pela simples razão de que Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre, imutável nisto assim como em tudo o mais. E somente pela união do divino e do humano, dos aspectos temporais e eternos da atividade de Cristo por nós é que poderemos compreender a riqueza e o consolo que a leitura desta maravilhosa epístola se destina a nos fornecer.

ELEIÇÃO E EVANGELIZAÇÃO R. B. KUIPER

Desde toda a eternidade Deus preordenou tudo o que acontece, incluindo o destino dos homens. A Bíblia chama de predestinação o decreto divino concernente a esse destino. O aspecto da predestinação mais saliente na Escritura é conhecido pelo nome de eleição. É ensinada em muitas passagens, como a de Efésios 1:4-6,11, que diz: "Assim como nos escolheu nele antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e em amor nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade, para louvor da glória de sua graça, pela qual nos fez agradáveis a si no Amado...Nele, digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade".
Nenhum concílio de igrejas deliberou sobre este assunto tão extensamente e com tão laboriosa consideração pela Palavra de Deus como o fez o Sínodo de Dort, em 1618 e 1619. Nele, praticamente todas as igrejas reformadas - calvinistas - da Europa, estiveram representadas. Aquela corporação de teólogos chegou à seguinte conclusão: "A eleição é o imutável propósito de Deus pelo qual, antes da fundação do mundo, simplesmente por Sua graça, de acordo com o soberano beneplácito da Sua vontade, de toda a raça humana que, por sua própria culpa, caíra do seu primitivo estado de retidão no pecado e na destruição, escolheu um certo número de pessoas para a redenção em Cristo, a quem Ele, desde a eternidade, designou para ser o Mediador e a Cabeça dos eleitos e o fundamento da salvação" (Cânones de Dort I, 7). O Capítulo III da Confissão de Fé de Westminster, sem dúvida o mais amadurecido de todos os credos calvinistas, considerado por muitos como o maior credo da cristandade, não é menos explícito sobre esse tema.
Ao procurarmos relacionar com a evangelização esta fase daquilo que normalmente é denominado "a secreta vontade de Deus", convém lembrar que estamos lidando com um profundo mistério, que estamos em terra santa, onde os anjos temem pisar, que o homem finito não pode nem começar a compreender o Deus infinito, e que, portanto, temos que ser sóbrios, evitando escrupulosamente qualquer especulação humana e apoiando-nos estritamente na segura Palavra de Deus.

A Amorosa Soberania da Eleição
A base da eleição não está nos escolhidos, mas em Deus. Não é verdade, como às vezes se diz, que Deus escolheu certas pessoas porque já sabia que iam crer em Cristo. Por certo Ele tinha conhecimento prévio disso, como também de tudo quanto haveria de suceder no tempo. Mas esse conhecimento prévio, ou presciência, não foi a razão da Sua escolha. A fé salvadora é um dom de Deus aos Seus eleitos. Por essa fé a eleição deles é concretizada (Efésios 2:8). Em vez de ser a base da eleição, é uma de suas conseqüências. A Bíblia afirma com clareza que Deus os escolheu "segundo o beneplácito de sua vontade" (Efésios 1:5). Isto só pode significar que Ele os escolheu soberanamente.
O caráter soberano da eleição transparece também no fato de que foi incondicional. Deus não escolheu certas pessoas para a vida eterna porque sabia que iriam crer em Cristo. Tampouco decretou que certos pecadores seriam salvos se eles cressem em Cristo. Deus decretou que certas pessoas seriam salvas mediante a fé em Cristo. Daí Paulo informou os cristãos de Tessalônica: "Deus vos escolheu desde o princípio para a salvação, pela santificação do Espírito e fé na verdade" (2 Tessalonicenses 2:13). Então, a fé é um fruto da eleição, não condição. "Ainda que Deus sabe tudo quanto pode ou há de acontecer em todas as circunstâncias imagináveis, ele não decreta coisa alguma por havê-las previsto como futura, ou como coisa que havia de acontecer em tais e tais condições" (Confissão de Fé de Westminster III, 2).
A soberania da eleição é manifesta ainda em sua imutabilidade. Deus declarou solenemente: "O meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade" (Isaías 46:10). Paulo afirma: "Aos que predestinou, a estes também chamou; e aos que chamou, a estes também justificou; e aos que justificou, a estes também glorificou" (Romanos 8:30). Cada um dos eleitos de Deus tem a segurança de que chegará à glória celeste. Os teólogos de Westminster andaram bem quando afirmaram que os eleitos "são e imutavelmente designados; o seu número é tão certo e definido, que não pode ser nem aumentado nem diminuído (Confissão de Fé de Westminster III, 4). Do mesmo modo, agiu bem o Sínodo de Dort ao atribuir a eleição ao "imutável beneplácito" de Deus (Cânones de Dort I, 11). Deus, "em quem não pode existir variação, nem sombra de mudança" (Tiago 1:17), não altera o Seu decreto. O frágil ser humano não o pode modificar. Nem Satanás.
Ninguém vá pensar que Deus escolheu arbitrariamente certas pessoas para a salvação. Deus não faz nada arbitrariamente. Tudo o que faz, Ele o faz porque é quem Ele é. Que é, pois, que havia em Deus que o moveu, por assim dizer, a escolher certas pessoas para a vida eterna? Deus respondeu inequivocadamente essa pergunta em Sua Palavra. Escolheu-as porque as amou. Romanos 8:29 diz: "Aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho", e 1 Pedro 1:2 fala dos escolhidos de Deus como "eleitos, segundo a presciência de Deus". Nestas duas passagens é evidente que conhecimento tem aquele sentido denso, tão freqüente na Escritura; a saber, amor. Presciência, então, é amor desde a eternidade. Deus amou os Seus eleitos desde a eternidade. Por essa razão os elegeu para a vida eterna. E se se perguntar por que Deus, desde a eternidade, amou para a salvação alguns homens em distinção de outros, convém que humildemente confessemos nossa ignorância. Somente numa extensão muitíssimo limitada podemos acompanhar os pensamentos de Deus. Seus pensamentos não são os nossos pensamentos. Como os céus são mais altos do que a terra, assim os pensamentos de Deus são mais altos do que os nossos pensamentos (Isaías 55:8,9). Contudo, sabemos isto: Ninguém merecia o amor de Deus. Como todos pecaram em Adão, todos mereciam a morte - sim, a morte eterna. Todos eram "por natureza filhos da ira" (Efésios 2:3). Se Deus tivesse deixado todos os homens perecerem eternamente, todos teriam recebido o que com justiça mereciam e ninguém teria de que se queixar. Por esta razão, é uma presunção indescritível queixar-se alguém de que Deus, no Seu conselho de predestinação, escolheu uns e deixou de lado outros. Aplicam-se aqui as causticantes palavras do apóstolo: "Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre a massa, para do mesmo barro fazer um vaso para honra e outro para desonra?" (Romanos 9:20,21). Ao invés de achar algumas culpa em Deus pelo fato de Ele tratar de maneira inteiramente justa certos pecadores merecedores do inferno, adoremo-lo por este eterno e gracioso amor que salva outros igualmente merecedores de condenação.
Fala-se aos cristãos que Deus os escolheu em Cristo (Efésios 1:4). Há muita discussão entre os teólogos sobre o significado exato dessa frase. Por ora, basta tirar algumas conclusões claras. Obviamente fica excluída a idéia de que Deus tenha escolhido determinados pecadores para a salvação sem referência a Cristo, e que, depois de ter feito isso, planejou a realização da salvação deles por meio de Cristo. Isso faria de Cristo um simples meio, no processo de execução do decreto de eleição. Não se nos diz que os eleitos foram escolhidos para a salvação por meio de Cristo, mas, sim, que foram escolhidos em Cristo para a salvação. É igualmente claro que a frase em Cristo não pode significar que, como Mediador entre Deus e os pecadores, Cristo, por assim dizer, induziu o Pai a escolher certos pecadores para a vida eterna. Esta interpretação contradiz João 3:16, que estabelece que Deus foi movido pelo amor aos pecadores ao enviar Seu Filho ao mundo para a realização da Sua obra mediadora. O fato de que Deus escolheu os Seus em Cristo significa necessariamente - sejam quais forem as outras verdades aí envolvidas - que no conselho da eleição Deus os viu como pertencentes a Cristo, Seu Filho amado. Em resumo, escolheu-os com base no amor com que Ele ama o Filho. Em outras palavras, a afirmação de Efésios 1:5 - "em amor nos predestinou" - é paralela à afirmação presente no versículo imediatamente anterior, e a explica; a afirmação de que Deus nos escolheu em Cristo.
A Eleição Requer Evangelização
Vez por outra se ouve a idéia de que a eleição torna supérflua a ação evangelizadora. Pergunta-se "Se o decreto da eleição é imutável e, portanto, torna absolutamente certa a salvação dos eleitos, que necessidade têm elas do Evangelho? Os eleitos não vão ser salvos mesmo, ouçam ou não o Evangelho?"
A premissa desse argumento é inteiramente verdadeira. A eleição divina torna a salvação dos eleitos inteiramente certa. Mas a conclusão derivada dessa premissa revela grave incompreensão da soberania divina como expressa no decreto da eleição.
Enquanto que a eleição foi feita na eternidade, não se pode perder de vista a verdade de que sua concretização é um processo que se dá no tempo, ou seja, dentro da história. Muitos fatores tomam parte nesse processo. Um deles é o Evangelho. E por sinal é um fator da maior significação.
Não se confunda a soberania de Deus com a Sua onipotência. Certamente Deus é todo-poderoso. Significativamente, o conciso Credo Apostólico se refere a este atributo de Deus, não uma, porém duas vezes. Se Deus quisesse, poderia pelo emprego da simples força levar para o Céu os eleitos, e igualmente pelo emprego da simples força lançar ao inferno os não eleitos. Mas Ele não faz nada disso. Pré-ordenação não é compulsão e a certeza não exclui a liberdade. Ninguém jamais foi convertido ao cristianismo à força. Todo verdadeiro converso volta-se para Cristo porque quer - embora seja certo que este querer é dom de Deus, transmitindo a ele por ocasião do seu novo nascimento. Deus trata os seres humanos como criaturas racionais, capazes de agir livremente. Por isso, Ele arrazoa e dialoga com os não salvos por meio do Evangelho. Quer "persuadir" os homens (2 Coríntios 5:11). E no caso dos eleitos, Ele aplica o Evangelho aos corações deles de maneira salvadora, mediante o Espírito Santo.
Não se vá supor que o soberano decreto de Deus só se refere aos fins, com a exclusão dos meios. Por mais ênfase que se dê, não será suficiente para expressar que Deus pré-ordenou tudo que sucede. Tudo abrange meios, bem como os fins. Para ilustrar, Deus não somente pré-determinou que dado fazendeiro colhesse este ano dez mil arrobas de trigo; pré-determinou também que colhesse aquela quantidade como resultado de muito trabalho duro. Do mesmo modo, Deus não decretou apenas que certo pecador herde a vida eterna, mas decretou que esse pecador receba a vida eterna por meio da fé em Cristo, e que obtenha a fé em Cristo por meio do Evangelho.
Não se pode imaginar a soberania de Deus como se ela eliminasse a responsabilidade dos homens. Como os mais cultos e competentes teólogos e filósofos se mostraram incapazes de conciliar a soberania divina com a responsabilidade humana perante o tribunal da razão, sempre se corre o risco de dar ênfase a uma delas em detrimento - ou mesmo com a exclusão - da outra. Mas a Bíblia ensina as duas verdades com grande ênfase. Aquele que aceita com humilde fé a Bíblia como a infalível Palavra de Deus, dará vigoroso destaque tanto a uma como à outra. Portanto, o pregador do Evangelho tem de dizer ao pecador, não apenas que a salvação é só pela graça soberana, mas também que, para ser salvo, ele precisa crer em Jesus Cristo como Salvador e Senhor. Por um lado, deve pregar que os eleitos de Deus serão salvos com toda a segurança; por outro lado, deve proclamar a advertência de que aquele que não crê no Filho não verá a vida, mas a ira de Deus permanece sobre ele (João 3:36). Mesmo os eleitos precisam desta admoestação, pois faz parte integrante do método que Deus adotou para levá-los à salvação.
Agora fica assegurada uma conclusão das mais significantes. Em vez de tornar supérflua a evangelização, a eleição requer a evangelização. Todos os eleitos de Deus têm que ser salvos. Nenhum deles pode perecer. E o Evangelho é o meio pelo qual Deus lhes comunica a fé salvadora. De fato, é o único meio que Deus emprega para esse fim. "A fé vem pelo ouvir e o ouvir pela palavra de Deus" (Romanos 10:17).
Observe-se que, por paradoxal que pareça, a eleição é universal. Certamente, a eleição é a escolha de certas pessoas, dentre um maior número, para a vida eterna. Assim a eleição reflete particularismo. Contudo, num sentido real, a eleição é universal. Deus tem os Seus eleitos em todas as nações e em todas as épocas. A igreja é composta de "eleitos de toda nação", e em nenhum período da história os eleitos pereceram na terra, e jamais acontecerá isto no futuro. Deus quer que o Evangelho seja proclamado no mundo todo e em todo o tempo para que seja congregada a soma total dos eleitos. É bom repetir, pois: a eleição exige a evangelização.
A mesma verdade pode-se ver de outro ângulo. A Escritura ensina que a eleição foi feita com vistas às boas obras. Disse Paulo: "Somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas" (Efésios 2:10). E a Escritura ensina especificamente que a eleição foi feita com vistas ao testemunho. Disse Pedro: "Vós sois raça eleita...a fim de proclamardes as grandezas daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz" (1 Pedro 2:9). Deus escolheu determinadas pessoas, não só para irem para o Céu quando morrerem, mas também para serem Suas testemunhas enquanto estiverem na terra. Digamos outra vez: a eleição exige a evangelização.
Eis outra conclusão igualmente significativa: a eleição assegura que a evangelização resulte em conversões genuínas. O pregador do Evangelho não tem como dizer quem em seu auditório pertence aos eleitos e quem não pertence. Mas Deus sabe. E Deus está pronto para aplicar e abençoar Sua Palavra nos corações dos Seus eleitos para a salvação. O momento preciso em que apraz a Deus fazer isso no caso de um eleito individual, não sabemos, mas é certo e seguro que o fará antes da morte da pessoa. Exatamente tão certo como todos os eleitos de Deus serão salvos, é certo que a palavra do Evangelho não tornará a Deus vazia (Isaías 55:11).

A Preterição e o Oferecimento do Evangelho
A eleição tem seu reverso. Se Deus escolheu da raça humana decaída certo número para a vida eterna, é óbvio que passou outros por alto, deixando-os em seu estado de perdição e decretando sua condenação por seus pecados. Teologicamente, este aspecto da predestinação é conhecido como preterição, rejeição ou reprovação. Tem-se alegado que esta doutrina elimina o sincero e universal oferecimento do Evangelho. Se Deus decretou desde a eternidade que certos homens pereçam eternamente, dizem os oponentes, é inconcebível que Ele, dentro da história, convide sinceramente a todos, sem distinção, para a vida eterna.
Numa tentativa de refutar esse argumento, às vezes se faz a observação de que o pregador humano não tem meios de saber quem é eleito e quem não é, e que, portanto, ele não tem outro recurso senão proclamar o Evangelho a todos, indiscriminadamente. Embora válida, essa observação não atinge o ponto. A questão é se Deus, que sabe infalivelmente quais são os Seus eleitos e quais não são, faz sincero oferecimento da salvação a todos os que são alcançados pelo Evangelho.
Fato da maior importância é que a Palavra de Deus ensina inequivocadamente, tanto a reprovação divina, como a universalidade e a sinceridade do oferecimento do Evangelho. É inegável que Romanos 9:21,22 ensina a doutrina da reprovação: "Ou não tem o oleiro direito sobre a massa, para do mesmo barro fazer um vaso para honra e outro para desonra? Que diremos, pois, se Deus querendo mostrar a sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os vasos de ira, preparados para a perdição...?" Também a ensina 1 Pedro 2:8, onde se faz menção dos "que tropeçam na palavra, sendo desobedientes, para o que também foram destinados". Como se demonstrou no capítulo anterior, o universal e sincero oferecimento do Evangelho é firme e certamente ensinado em Ezequiel 33:11, 2 Pedro 3:9 e em outras partes mais.
Também podemos admitir - ou melhor, tem que ser admitido - que estes ensinos não podem ser conciliados entre si pela razão humana. Tanto quanto possa interessar à lógica humana, um exclui o outro. Todavia, a aceitação de um deles com a exclusão do outro é condenada como racionalismo. A norma da verdade não é ditada pela razão humana, e sim pela infalível Palavra de Deus. A Palavra contém muitos paradoxos. O exemplo clássico é o da soberania divina e a responsabilidade humana. As duas doutrinas que estamos focalizando agora, também constituem um chocante paradoxo. Destruir um paradoxo bíblico pela rejeição de um dos seus elementos, é colocar a lógica humana acima da Palavra divina. Submeter a lógica humana ao logos divino faz parte da fé singela como a das crianças.
É digno de nota que, na história da igreja cristã, os teólogos que têm insistido mais na verdade da rejeição divina, são os que têm defendido também, e da maneira mais enfática, o universal e sincero oferecimento do Evangelho. Seguem alguns exemplos.
É do conhecimento geral que João Calvino ensinava a doutrina da reprovação divina. Às vezes ele assumia até a posição supralapsária, assim chamada. Quer dizer, defendia a idéia de que o decreto da predestinação precedeu logicamente os decretos da criação e da queda. No entanto, ao comentar Ezequiel 18:23, passagem paralela a Ezequiel 33:11, disse ele: "Não há nada que Deus deseja mais ardentemente do que, que aqueles que estejam perecendo e correndo para a destruição retomem o caminho da segurança". E continuou? "Se alguém objetar - bem, neste caso não há nenhuma eleição de Deus pela qual Ele tenha predestinado um número fixo para a salvação - a resposta está à mão: o profeta não fala aqui do secreto conselho de Deus, mas somente evoca aos homens em desgraça o seu desespero, para que apreendam a esperança de perdão, arrependam-se e abracem a salvação oferecida. Se alguém mais contestar - isso é fazer Deus agir com duplicidade - a resposta está preparada, que Deus sempre quer a mesma coisa, embora por diferentes meios e de modo inescrutável para nós. Portanto, embora a vontade de Deus seja simples, grande variedade a envolve, no que diz respeito aos nossos sentidos. Além disso, não é surpreendente que nossos olhos sejam cegados por luz intensa, de modo que, certamente, não podemos julgar como é que Deus quer que todos se salvem e, contudo, destinou todos os reprovados à destruição eterna, e quer que eles pereçam. Enquanto olhamos através de um vidro, obscuramente, devemos satisfazer-nos com a medida do nosso entendimento.
Os Cânones de Dort ensinam inconfundivelmente a doutrina da reprovação. Dizem eles: "O que peculiarmente tende a ilustrar e a recomendar-nos a eterna e imerecida graça da eleição é o expresso testemunho da Sagrada Escritura de que não todos, mas somente alguns são eleitos, enquanto que outros são deixados de lado no decreto eterno. A estes Deus, por seu soberano, justíssimo, irrepreensível e imutável beneplácito, decidiu deixar caídos em sua miséria comum à qual se tinham lançado voluntariamente, e não lhes dar a fé salvadora e a graça da conversão. Mas, permitindo em seu justo julgamento que sigam os seus próprios caminhos, decidiu afinal, para a manifestação da sua justiça, condená-los e puní-los para sempre, não somente por causa da incredulidade deles, mas também por todos os seus outros pecados" (I, 15). Todavia, os Cânones insistem: "Todos quantos são chamados pelo Evangelho, são chamados com sinceridade. Pois Deus declarou ardorosa e verdadeiramente em Sua Palavra o que é aceitável a Ele, a saber, que aqueles que são chamados, venham a Ele" (III, IV, 8).
Em apoio do ensinamento de Dort que transcrevemos acima, Herman Bavinck negou tanto que a fé seja a causa da eleição como que o pecado seja a causa da rejeição, e insistiu em que a eleição e a rejeição têm suas raízes no soberano beneplácito de Deus. Para ser exato, ele ensinou que Deus decretou soberanamente, desde a eternidade, que alguns homens escapariam da punição dos seus pecados, e outros não (Gereformeerde Dogmatick, II, 399). Mas na mesma obra clássica, aquele calvinista equilibrado afirmou também: "Embora através do chamado a salvação se torne a porção de apenas uns poucos...ele [o chamamento], não obstante, é de grande valor e significação também para aqueles que o rejeitam. Para todos, sem exceção, é prova do infinito amor de Deus, e sela a declaração de que Ele não tem prazer na morte do pecador, mas que ele se volte e viva" (IV, 7).

A Apresentação da Eleição aos Não Salvos
Não se pode simplesmente suprimir a pergunta sobre que lugar, se há algum, a doutrina da eleição deve ocupar na pregação aos não salvos.
A Escritura e as confissões calvinistas dizem-nos que a verdade da eleição visa primariamente aos crentes. O propósito ao qual ela serve em benefício deles foi admiravelmente resumido nos Cânones de Dort. Dizem eles: "O senso e a certeza desta eleição comunicam aos filhos de Deus matéria adicional para a sua humilhação diária diante dEle, para adorarem a profundidade das Suas misericórdias, para se purificarem e para oferecerem gratas retribuições de ardente amor a Ele, que manifestou primeiro tão grande amor para com eles" (I, 13).
Uma velha ilustração torna bem claro o uso que não deve ser feito da doutrina da eleição ao lidarmos com pessoas não salvas. Pode-se falar da casa da salvação. Seu alicerce é o decreto divino da eleição, e sua entrada é Cristo. Ele disse: "Eu sou a porta" (João 10:9). Quando os que pela graça de Deus se acham dentro convidam os de fora a entrar, indicam para eles o alicerce ou a porta? A resposta é mais que evidente. Assim, quando o carcereiro de Filipos perguntou a Paulo e Silas o que devia fazer para salvar-se, eles não o aconselharam a que procurasse descobrir se estava na lista dos eleitos; mandaram-no crer no Senhor Jesus Cristo (Atos 16:31).
Vamos concluir que os homens devem ser mantidos na ignorância da eleição enquanto não receberem a Cristo pela fé? Naturalmente a resposta e esta pergunta deve ser negativa. Sem dúvida, a Assembléia de Westminster estava bem fundamentada ao advertir que "a doutrina deste alto mistério de predestinação deve ser tratada com especial prudência e cuidado" (Confissão de Fé de Westminster, III, 8), mas isto não pode significar que deva ser mantida oculta dos não salvos. Muito ao contrário, eles devem ser advertidos que não torçam esta verdade e exortados a fazerem uso apropriado dela.
Especificamente, deve-se dizer a eles que a eleição dá lugar à salvação pela graça divina, que os méritos humanos estão fora de cogitação, e que, portanto, há esperança para o maioral dos pecadores; que o Deus da eleição convida com sinceridade, cordialidade e mesmo com urgência, todo pecador para a salvação; que a predestinação longe de excluir a responsabilidade humana, definidamente a inclui, de modo que todos os que ouvem a proclamação do Evangelho estão, por dever sagrado, moralmente obrigados a crer, e, não sendo Deus a causa da incredulidade como é a causa da fé, os que persistem na incredulidade perecem por inteira culpa deles mesmos; que o decreto da eleição não é secreto no sentido de que ninguém pode estar certo de pertencer aos eleitos, mas que, ao contrário, visto que a fé em Cristo é o fruto e também a prova da eleição, a pessoa pode ter tanta certeza de que está incluída no número dos eleitos como de que é crente em Cristo Jesus; que a casa para a qual eles são convidados tem alicerce imutável e eterno, de sorte que aquele que entra, ainda que o inferno todo ataque, não terá a mínima possibilidade de perecer, mas, com absoluta certeza herdará a vida eterna.