sexta-feira, 11 de março de 2011

A DOUTRINA DE CRISTO ANTES DA REFORMA- LOUIS BERKHOF

Relação entre Antropologia e Cristologia

Há uma relação muito estreita entre a doutrina do homem e a de Cristo. A primeira trata do homem, criado à imagem de Deus e dotado de verdadeiro conhecimento, justiça e santidade, mas que, pela voluntária transgressão da lei de Deus, despojou-se da sua verdadeira humanidade e se transformou em pecador. Ela mostra o homem como uma criatura de Deus altamente privilegiada, trazendo ainda alguns traços da sua glória original, mas, todavia, uma criatura que perdeu os seus direitos de nascimento, sua verdadeira liberdade e sua justiça e santidade originais. Significa que a doutrina dirige a atenção não apenas, nem primeiramente, à condição do homem como criatura, mas, sim, à sua pecaminosidade. Salienta a distância ética que há entre Deus e o homem, distância resultante da queda do homem e que, nem o homem nem os anjos podem cobrir, e, como tal, é virtualmente um grito pelo socorro divino. A cristologia é em parte a resposta a esse grito. Ela nos põe a par da obra objetiva de Deus em Cristo construindo uma ponte sobre o abismo e eliminando a distância. A doutrina nos mostra Deus vindo ao homem para afastar as barreiras entre Deus e o homem pela satisfação das condições da lei em Cristo, e para restabelecer o homem em sua bendita comunhão. A antropologia já dirige a atenção à provisão da graça de Deus para uma aliança de companheirismo com o homem que prove uma vida de bem-aventurada comunhão com Deus; mas a aliança só é eficiente em Cristo e por meio de Cristo. E, portanto, a doutrina de Cristo como Mediador da aliança deve vir necessariamente em seguida. Cristo, tipificado e prenunciado no Antigo Testamento como o Redentor do homem, veio na plenitude do tempo, para tabernacular entre os homens e levar a efeito uma reconciliação eterna.

A Doutrina de Cristo antes da Reforma

1. ATÉ O CONCILIO DE CALCEDÔNIA. Na literatura cristã primitiva Cristo sobressai como humano e divino, como o Filho do homem, mas também como o Filho de Deus. Seu caráter sem pecado é defendido, e ele é considerado como legítimo objeto de culto. Naturalmente, o problema suscitado por Cristo, como ao mesmo tempo Deus e homem, e as dificuldades envolvidas em tal concepção, não foram plenamente sentidos pela mente cristã dos primeiros tempos, e só assomaram a ela à luz da controvérsia. Era simplesmente natural que o Judaísmo, com a sua forte ênfase ao Monoteísmo, exercesse considerável influência sobre os primeiros cristãos, de extração judaica. Os ebionitas (ou parte deles) sentiram-se constrangidos, no interesse do Monoteísmo, a negar a divindade de Cristo. Eles o consideravam como simples homem, filho de José e Maria, qualificado em seu batismo para ser o Messias, pela descida do Espírito Santo sobre ele. Havia outros na Igreja Primitiva cuja doutrina sobre Cristo foi elaborada sobre linhas semelhantes. Os alogi (álogos ou alogianos), que rejeitavam os escritos de João por que entendiam que a sua doutrina do Logos está em conflito, com o restante do Novo Testamento, também viam em Jesus apenas um homem, conquanto miraculosamente nascido de uma virgem, e ensinavam que Cristo desceu sobre ele no batismo, conferindo-lhe poderes sobrenaturais. No essencial, esta era também a posição dos monarquistas dinâmicos. Paulo de Samosata, seu principal representante, distinguia entre Jesus e o Logos. Ele considerava aquele como um homem igual a todos os demais, nascido de Maria, e este como razão impessoal divina, que fez sua habitação em Cristo num sentido preeminente, desde a ocasião do seu batismo, e assim o qualificou para a sua grande tarefa. Em vista dessa negação, fazia parte da função dos primitivos apologetas a defesa da doutrina da divindade de Cristo.

Se havia alguns que sacrificavam a divindade pela defesa da humanidade de Cristo, havia outros que invertiam a ordem. Os gnósticos foram profundamente influenciados pela concepção dualista dos gregos, em que a matéria, entendida como inerentemente má, é descrita como completamente oposta ao espírito; e por uma tendência mística para considerar as coisas terrenas como representações alegóricas dos grandes processos redentores cósmicos. Rejeitavam a idéia de uma encarnação, de uma manifestação de Deus em forma visível, visto que isto envolveria um contato direto do espírito com a matéria. Harnack diz que a maioria deles considerava Cristo como um Espírito consubstanciai com o Pai. Conforme alguns, ele desceu sobre o homem Jesus quando do seu batismo, mas o deixou de novo antes da sua crucificação; ao passo que, segundo outros, ele assumiu um corpo meramente fantasmagórico. Os monarquistas modalistas também negavam a humanidade de Cristo, em parte no interesse da sua divindade, e em parte para preservar a unidade do Ser divino. Viam nele apenas um modo ou uma manifestação do Deus único, em quem não reconheciam nenhuma distinção de pessoas. Os chamados pais alexandrinos e antignósticos empreenderam a defesa da divindade de Cristo, mas em seu trabalho de defesa não evitaram inteiramente o erro de descrevê-lo como subordinado ao Pai. Mesmo Tertuliano ensinava uma espécie de subordinação, mas especialmente Orígenes, que não hesitava em falar de uma subordinação quanto à essência. Isto veio a ser um ponto de partida para o Arianismo, no qual se faz distinção entre Cristo e o Logos como a razão divina, e Cristo é apresentado como uma criatura pretemporal, super-humana, a primeira das criaturas, não Deus e, todavia, mais que homem. Atanásio contestou a Ario e defendeu vigorosamente a posição de que o Filho é consubstanciai Pai e da mesma essência do Pai, posição que foi oficialmente adotada pelo Concilio de Nicéia, em 325. O Semi-arianismo propôs uma via media, declarando que a essência do Filho é semelhante à do Pai.

Quando a doutrina da divindade do Filho foi estabelecida oficialmente, surgiu, como é natural, a questão quanto à relação mútua das duas naturezas de Cristo. Apolinário ofereceu uma solução ao problema. Aceitando a concepção tricotômica grega, o homem como consistindo de corpo, alma e espírito, ele tomou a posição de que o Logos assumiu o lugar do espírito (pneuma) no homem, que ele considerava a sede do pecado. Seu principal interesse era assegurar a unidade da pessoa de Cristo, sem sacrificar a sua real divindade; e também resguardar a impecabilidade de Cristo. Mas o fez em detrimento da completa humanidade do Salvador e, conseqüentemente, a sua posição foi explicitamente condenada pelo Concilio de Constantinopla, em 381. Uma das coisas pelas quais Apolinário lutava era a unidade da pessoa de Cristo. Que isso realmente corria perigo viu-se claramente na posição assumida pela escola de Antioquia, que exagerava a distinção das duas naturezas de Cristo. Theodoro de Mopsuéstia e Nestório acentuavam a completa humanidade de Cristo e entendiam que a habitação do Logos nele era apenas uma habitação moral, como a que os crentes também gozam, embora não no mesmo grau. Eles viam em Cristo um homem lado a lado com Deus, em aliança com Deus, compartindo o propósito de Deus, mas não unido a ele numa unidade de vida pessoal única - viam nele um Mediador que consistia de duas pessoas. Em oposição a eles, Cirilo de Alexandria salientava fortemente a unidade da pessoa de Cristo e, na opinião dos seus oponentes, negava as duas naturezas. Embora com toda a probabilidade esses oponentes o tenham entendido mal, Eutico e os seus seguidores certamente recorrem a ele quando assumiram a posição de que a nature¬za humana de Cristo foi absorvida pela divina, ou que as duas se fundiram resultando numa só natureza, posição que envolvia a negação das duas naturezas de Cristo. O Concilio de Calcedônia, em 451, condenou esses dois conceitos e manteve a crença na unidade da pessoa, como também na dualidade das naturezas.

2. APÓS O CONCÍLIO DE CALCEDÔNIA. Por algum tempo o erro eutiquiano continuou com os monofisitas e monotelitas, mas finalmente foi dominado pela Igreja. E o perigo de que a natureza humana de Cristo fosse considerada como inteiramente impessoal foi afastado por Leôncio de Bizâncio, quando demonstrou que ela não é impessoal, mas impessoal, tendo a sua subsistência pessoal na pessoa do Filho de Deus. João de Damasco, com quem a Cristologia do Oriente alcançou o seu desenvolvimento máximo, acrescentou a idéia de que há uma circumincessão do divino e do humano em Cristo, uma comunicação dos atributos divinos à natureza humana, de modo que esta é deificada e também podemos dizer que Deus sofreu na carne. Ele mostra a tendência de reduzir a natureza humana à posição de mero órgão ou instrumento do Logos, se bem que admite que há cooperação das duas naturezas, e que a pessoa única exerce ação e vontade em cada natureza, embora a natureza humana esteja sempre sujeita à divina.

Na Igreja Ocidental, Felix, bispo de Urgel, defendeu o Adocionismo. Ele considerava Cristo, quanto a sua natureza divina, isto é, o Logos, como o unigênito Filho de Deus no sentido natural, mas considerava Cristo, em seu lado humano, como um Filho de Deus meramente por adoção. Felix procurou preservar a unidade da pessoa salientando o fato de que, desde o momento da sua concepção, o Filho do homem foi absorvido na unidade da pessoa do Filho de Deus. Fez-se, assim, distinção entre a filiação natural e a adotiva, e esta não começou com o nascimento natural de Cristo, mas teve início por ocasião do seu batismo e se consumou em sua ressurreição. Foi um nascimento espiritual que fez de Cristo o Filho adotivo de Deus. Mais uma vez a Igreja viu a crença na unidade da pessoa de Cristo ameaçada por esse conceito e, portanto, ele foi condenado pelo Sínodo de Franckfurt, em 794.

A Idade Média acrescentou muito pouca coisa à doutrina da pessoa de Cristo. Devido a várias influências, como as de ênfase à imitação de Cristo, das teorias sobre a expiação, e do desenvolvimento da doutrina da missa, a Igreja se apegou fortemente à plena humanidade de Cristo. "A divindade de Cristo", diz Mackintosh, "passou a ser vista mais como o coeficiente infinito elevando a ação e a paixão humanas a um valor infinito". E, contudo, alguns dos escolásticos expuseram em sua Cristologia um conceito docético de Cristo. Pedro Lombardo não hesitava em dizer que, com relação a sua humanidade, Cristo não era absolutamente nada. Mas este Niilismo foi condenado pela Igreja. Alguns novos pontos foram salientados por Tomás de Aquino. Segundo ele, a pessoa do Logos tornou-se composta na encarnação, e sua união com a natureza humana "impediu" esta última de chegar a ter uma personalidade independente.

A natureza humana de Cristo recebeu dupla graça em virtude de sua união com o Logos, (a) a gratia unionis (graça da união), que lhe comunicou uma dignidade especial, de modo que até se tornou objeto de culto, e (b) a gratia habiíualis (graça habitual), que a mantinha em sua relação com Deus. O conhecimento humano de Cristo era duplo, a saber, um conhecimento infuso e um conhecimento adquirido. Há duas vontades em Cristo, mas a causalidade última pertence à vontade divina, à qual a vontade humana está sempre sujeita.

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