sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Esfera em que Ocorre a Justificação – Louis Berkhof

A questão quanto à esfera em que ocorre a justificação deve ser respondida com discernimento. É costume distinguir entre uma justificação ativa e uma passiva, também denominadas objetiva e subjetiva, cada qual com a sua própria esfera.

1. JUSTIFICAÇÃO ATIVA OU OBJETIVA. Esta é a justificação no sentido mais funda¬mental da palavra. É básica em relação ao que se chama justificação subjetiva, e consiste numa declaração que Deus faz a respeito do pecador, declaração feita no tribunal de Deus. Não se trata de uma declaração de que Deus simplesmente absolve o pecador, sem levar em conta as reivindicações da justiça, mas, sim, de uma declaração divina de que, no caso do pecador em foco, as exigências da lei são satisfeitas. O pecador é declarado justo em vista do fato de que a justiça de Cristo lhe é imputada. Nesta transação Deus comparece, não como um Soberano absoluto que simplesmente põe de lado a lei, mas como um Juiz justo, que reconhece os méritos infinitos de Cristo como uma base suficiente para a justificação, e como um Pai misericordioso, que perdoa e aceita graciosamente o pecador. Esta justificação ativa antecede logicamente à fé e a justificação passiva. Cremos no perdão dos pecados.

2. JUSTIFICAÇÃO PASSIVA OU SUBJETIVA. A justificação passiva ou subjetiva tem lugar no coração ou na consciência do pecador. Uma justificação puramente objetiva, que não fosse dada a conhecer ao pecador, não corresponderia ao propósito pretendido. A concessão de perdão a um prisioneiro não significaria nada, se as alegres novas não lhe fossem comunicadas e as portas da prisão não fossem abertas. Além disso, é exatamente neste ponto, melhor do que noutro qualquer, que o pecador aprende a entender que a salvação é inteiramente de graça. Quando a Bíblia fala de justificação, normalmente se refere àquilo que é conhecido como jus¬tificação passiva. Deve-se ter em mente, porém, que as duas são inseparáveis. Uma se baseia na outra. Faz-se a distinção simplesmente para facilitar a correta compreensão do ato de justificação. Logicamente, a justificação passiva vem em seguida à fé; somos justificados pela fé.

F. Ocasião em que se Dá a Justificação

Alguns teólogos separam cronologicamente a justificação ativa e passiva. Neste caso, dizem que a justificação ativa deu-se na eternidade, ou quando da ressurreição de Cristo, ao passo que a justificação passiva realiza-se pela fé, e, portanto, assim se diz, segue-se à outra, no sentido cronológico. Consideraremos sucessivamente a justificação desde a eternidade, a justificação na ressurreição de Cristo e a justificação pela fé.

1. JUSTIFICAÇÃO DESDE A ETERNIDADE. Os antinominianos afirmavam que a jus-tificação do pecador aconteceu na eternidade ou na ressurreição de Cristo. Eles a confundiam, quer com o decreto eterno de eleição, quer com a justificação objetiva de Cristo quando ele ressurgiu dos mortos. Eles não distinguiam acertadamente entre o propósito divino na eternida¬de e sua execução no tempo, nem entre a obra de Cristo em que ele obteve as bênçãos da redenção, e a do Espírito Santo, na aplicação delas. Segundo esta posição, somos justificados antes de crermos, embora inconscientes disto, e a fé apenas nos transmite a declaração deste fato. Além disso, o fato de que os nossos pecados foram imputados a Cristo faz dele pessoal¬mente um pecador, e a imputação da sua justiça a nós faz-nos pessoalmente justos, de modo que Deus não pode ver absolutamente nenhum pecado nos crentes. Alguns teólogos reformados também falam de uma justificação desde a eternidade, mas, ao mesmo tempo, recusam-se a subscrever a elaboração antinominiana desta doutrina. As bases sobre as quais eles acreditam numa justificação desde a eternidade merecem breve consideração.

a. Bases da doutrina da justificação desde a eternidade.

(1)     A Escritura fala de uma graça ou misericórdia de Deus que é desde a eternidade, SI 25.6; 103.17. Ora, toda graça ou misericórdia que seja desde a eternidade tem que ter como sua base judicial uma justificação que seja também desde a eternidade. Mas, em resposta a isto, pode-se dizer que existem misericórdias e bondades eternas de Deus que não são baseadas em nenhuma justificação do pecador, como, por exemplo, o seu plano de redenção, a dádiva de seu Filho e a voluntária função de penhor exercida por Cristo no pactum salutis.

(2)     No pactum salutis a culpa dos pecados dos eleitos foi transferida para Cristo, e a justiça de Cristo lhes foi imputada. Quer dizer que o fardo do pecado foi retirado dos ombros deles e que eles foram justificados. Pois bem, não há dúvida de que houve certa imputação da justiça de Cristo ao pecador no conselho de redenção, mas nem toda imputação pode ser cha¬mada justificação, no sentido escriturístico do termo. Devemos distinguir entre o que teve apenas um caráter ideal no conselho de Deus e aquilo que se concretiza no transcurso da história.

(3)     O pecador recebe a graça inicial da regeneração sobre a base da justiça de Cristo a ele imputada. Conseqüentemente, os méritos de Cristo têm que lhe ser imputados antes da sua regeneração. Mas apesar desta consideração levar à conclusão de que a justificação precede logicamente à regeneração, isto não prova a prioridade cronológica da justificação. O pecador não pode receber a graça da regeneração com base numa justificação existente idealmente no conselho de Deus e que conta com a certeza de que se concretizará na vida do pecador.

(4)     As crianças também precisam da justificação, para serem salvas, e, todavia, é-lhes totalmente impossível experimentar a justificação pela fé. Mas, embora seja mais que certo que as crianças que ainda não atingiram a maturidade não podem ter experiência da justificação passiva, podem ser justificados ativamente no tribunal de Deus e, assim, podem ter posse da¬quilo que é absolutamente essencial.

(5)     A justificação é um ato imanente de Deus e, como tal, só pode ser oriundo da eternidade. Não é bem correto, porém, falar da justificação como um actus immanens (ato imanente) em Deus; é, antes, um actus transiens (ato transitivo), exatamente como a criação, a encarnação e outros mais. Os defensores da justificação desde a eternidade vêem o peso desta consideração e, daí, apressam-se a garantir-nos que eles não pretendem ensinar que os eleitos são justificados desde a eternidade actualiter (em termos de ação concretizada), mas unicamente na intenção de Deus, no decreto divino. Isto nos leva de volta à distinção usual entre o conselho de Deus e sua execução. Se esta justificação presente na intenção de Deus nos permite falar de uma justificação desde a eternidade, então não há absolutamente nenhum motivo pelo qual não devamos falar também de uma criação desde a eternidade.

b. Objeções à doutrina da justificação desde a eternidade.

(1)     A Bíblia ensina uniformemente que a justificação se dá pela fé ou é provinda da fé. Naturalmente, isto se aplica à justificação passiva ou subjetiva, que, entretanto, não pode sepa¬rar-se cronologicamente da justificação ativa ou objetiva, exceto no caso das crianças. Mas, se a justificação se realiza pela fé, certamente não precede à fé, no sentido cronológico. Ora, é certo que os defensores da justificação desde a eternidade também falam da justificação pela fé. Mas, na sua descrição da matéria, isto só pode significar que, pela fé, o homem ganha consciên¬cia daquilo que Deus fez na eternidade.

(2)     Em Rm 8.29,30, onde vemos alguns dos degraus (scalae) da ordo salutis (ordem da salvação), a justificação está entre dois atos de Deus realizados no tempo, quais sejam, a voca¬ção e a glorificação, sendo que esta começa no tempo e se completa na eternidade futura. E estes três, juntos, resultam de outros dois que são explicitamente indicados como eternos. O Dr. Kuyper não tem base para dizer que Rom 8.30 se refere àquilo que aconteceu com os regenerados antes de nascerem, como até o dr. De Moor, que também acredita numa justificação desde a eternidade, mostra-se disposto a admitir.

(3)     Ao ensinar-se a justificação desde a eternidade, o decreto de Deus a respeito da justi¬ficação do pecador, que é um actus immanens, é identificado com a própria justificação, que é um actus transiens. Isto só leva a confusão. O que teve lugar no pactum salutis (aliança da salvação) não pode ser identificado com o que disso resulta. Toda imputação ainda não é justificação. A justificação é um dos frutos da obra redentora de Cristo aplicada aos crentes pelo Espírito Santo. Mas o Espírito não aplicou, nem poderia aplicar, este ou qualquer outro fruto da obra de Cristo desde a eternidade.

2. JUSTIFICAÇÃO NA RESSURREIÇÃO DE CRISTO. A idéia de que, nalgum sentido da palavra, os pecadores são justificados na ressurreição de Cristo, foi apregoada por alguns Arminianos, é ensinada por aqueles teólogos reformados que acreditam numa justificação des¬de a eternidade, e também é definida por alguns outros eruditos reformados. Este conceito se funda nas seguintes bases:

a.       Com sua obra expiatória, Cristo satisfez todas as exigências da lei pelo seu povo. Na ressurreição de Cristo dentre os mortos, o Pai declarou publicamente que todas as condições da lei foram preenchidas para todos os eleitos e, com isso, eles foram justificados. Mas aqui também se requer uma distinção muito cuidadosa. Mesmo que seja verdade que houve uma justificação objetiva de Cristo e de todo o corpo de Cristo em sua ressurreição, não se deve confundir isto com a justificação do pecador a que a Bíblia se refere. Não é verdade que, quando Cristo prestou plena satisfação ao Pai por todos os seus, a culpa destes acabou naturalmente. O débito penal não é como uma dívida pecuniária, neste sentido. Mesmo depois de pago o resgate, a remoção da culpa pode depender de certas condições, e não ocorre como um resultado líquido e certo. No sentido escriturístico, os eleitos não são justificados enquanto não aceitam a Cristo pela fé, apropriando-se assim dos seus méritos.

b.      Em Rm 4.25 lemos que Cristo "ressuscitou por causa da {dia, causai, a causa de) nossa justificação", isto é, para efetuar a nossa justificação. Pois bem, é indubitavelmente certo que dia com o acusativo aqui é causai nesta passagem. Ao mesmo tempo, não é necessariamente retrospectiva, mas também pode ser prospectiva e, daí, pode significar "com vistas à nossa justificação", o que equivale dizer: "a fim de que pudéssemos ser justificados". A interpretação retrospectiva entraria em conflito com o contexto imediatamente subseqüente, que mostra claramente: (1) que Paulo não está pensando na justificação objetiva de todo o corpo de Cristo, mas na justificação pessoal dos pecadores; e (2) que ele entende que isto se dá por meio da fé.

c.       Em 2Co 5.19 lemos: "... Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões". Desta passagem se deduz a inferência de que a reconciliação do mundo com Cristo envolve a não imputação do pecado ao pecador. Mas esta interpretação não é correta. O que o apóstolo quer dizer é, evidentemente: Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, como transparece no fato de que ele não imputa aos homens os seus pecados, e de que ele confiou aos seus servos a palavra da reconciliação. Observe-se que me logizomenos (tempo presente) refere-se a algo que está indo avante constantemente. Não se pode conceber que isto faz parte da reconciliação objetiva, pois, neste caso, a cláusula seguinte, "e nos confiou a palavra da reconciliação", também teria que ser interpretada assim, o que é inteiramente impossível.

Com relação a esta matéria, pode-se dizer que podemos falar de uma justificação do corpo global de Cristo em sua ressurreição, mas esta justificação é puramente objetiva, e não deve ser confundida com a justificação pessoal do pecador.

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