Liberdade de Expressão - Carta de Princípios 2011 do Mackenzie
CARTA DE PRINCÍPIOS 2011
LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE EXPRESSÃO
INTRODUÇÃO
Os conceitos de
liberdade de consciência e de expressão têm recebido crescente atenção
pública em nosso país em anos recentes. Entre as diversas causas, estão
o crescimento da pluralidade cultural, da diversidade religiosa e do
relativismo como fatores integrantes da sociedade brasileira. De que
maneira as pessoas podem ter e expressar suas convicções em um ambiente
onde outros indivíduos pensam e se comportam de maneira diversa dessas
convicções? Essa questão também faz parte do cotidiano universitário,
especialmente em instituições confessionais como o Mackenzie, que
primam por princípios éticos ao mesmo tempo em que sustentam a
autonomia universitária.
O QUE É LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE EXPRESSÃO
Acreditar
no que quiser é um direito intrínseco a cada ser humano. A consciência
é foro íntimo, inviolável, sobre o qual outros não podem legislar. Faz
parte da nossa humanidade termos nossas próprias ideias, convicções e
crenças. E é daqui que procede a outra liberdade, a de expressão, que
consiste no direito de alguém declarar o que acredita e os motivos
pelos quais acredita de determinada forma e não de outra. Nesse direito
está implícito o que chamamos de “contraditório”, que é a liberdade de
análise e posicionamento contrário às expressões ou manifestações de
outras pessoas em qualquer área da vida. A liberdade de consciência diz
respeito ao que cremos, interiormente. Já a liberdade de expressão é a
manifestação externa dessas crenças.
OS FUNDAMENTOS DA LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE EXPRESSÃO
O
direito individual de pensar livremente e de expressar tais
pensamentos é garantido em todas as democracias do mundo ocidental.
A Constituição
No Brasil,
a liberdade de consciência e de expressão do pensamento é garantida
pela Constituição em vigor. Sua origem se encontra no caput do Artigo
5º, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza”, sendo assegurada a inviolabilidade dessa condição de
igualdade. Se todos são iguais, todos podem expressar suas ideias,
pensamentos e crenças, desde que os direitos dos outros sejam
respeitados.
Ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, a Constituição diz no Artigo 5º:
Ao tratar dos direitos e garantias fundamentais, a Constituição diz no Artigo 5º:
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
VI - é inviolável a liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto
e a suas liturgias.
A liberdade de expressão religiosa é decorrente da liberdade de consciência e consiste no direito das pessoas de manifestarem suas crenças ou descrenças. Aqui se incluem adeptos das religiões, do ateísmo e do agnosticismo. Por ter origem na consciência, a liberdade de expressão religiosa inclui concepções morais, éticas e comportamentais, que são desenvolvimentos da crença individual. A separação entre Igreja e Estado no Brasil significa tão somente que nosso país não adota e nem protege uma ou mais religiões. O Estado é “laico”, mas, não sendo antirreligioso, ele garante o direito de seus cidadãos professarem publicamente e praticarem a religião que quiserem, assegurando-lhes que não serão discriminados por isso, conforme o mesmo Artigo 5º:
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política...
Direitos Humanos
A
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 também se preocupou
em resguardar a liberdade de consciência e de expressão,
particularmente a expressão religiosa. O artigo 18 diz: Todo homem tem
direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito
inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de
manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo
culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou
particular. Entendemos que esse amplo reconhecimento das liberdades
individuais tem fundamento no fato, nem sempre considerado, de que o
ser humano foi criado por Deus.
A imagem de Deus
Do
ponto de vista da fé cristã, a liberdade de consciência decorre
fundamentalmente do fato de termos sido criados por Deus como seres
morais livres. É uma das coisas incluídas na “imagem e semelhança de
Deus” com que fomos criados, de acordo com o relato de Gênesis 1.26-27:
Então disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa
semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu,
sobre os animais grandes de toda a terra e sobre todos os pequenos
animais que se movem rente ao chão. Criou Deus o homem à sua imagem, à
imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. O homem recebeu, por
direito de criação, a capacidade de julgar entre o certo e o errado e
escolher entre os dois. Ele podia livremente ponderar, analisar e,
então, escolher. O fato de que ele teria de arcar com as consequências
de suas escolhas diante do Criador não anulava, todavia, seu direito de
fazê-las e defendê-las. É nisto que reside o que chamamos de liberdade
de consciência e de expressão. Como um ser criado, o homem responde
diretamente ao Criador pelo uso dessas liberdades. Ousamos dizer que
uma das influências decisivas para que essas liberdades fossem
reconhecidas no mundo ocidental veio da Reforma Protestante do século
XVI. Os cristãos enfatizaram a necessidade da separação entre a Igreja e
o Estado, destacaram o fato de que cada cristão tem sua consciência
cativa somente a Deus e defenderam o sacerdócio universal de todos os
cristãos. Um exemplo dos esforços destes cristãos para garantir a
liberdade de expressão é o apelo de John Milton ao Parlamento Inglês, em
1644, em defesa da liberdade de imprensa.1
OS LIMITES DA MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO
Sociedades
plurais em países em que há separação entre Igreja e Estado sempre
terão de enfrentar o dilema entre a liberdade de manifestação do
pensamento e os direitos individuais. Se por um lado as leis
brasileiras nos garantem a liberdade de expressão, por outro, elas
também preservam a honra e a imagem das pessoas. Não se pode denegrir
uma determinada pessoa em nome da liberdade de expressão.
Falar e assumir
Conforme
reza a Constituição, uma das condições para que se manifeste livremente
o pensamento no Brasil é que a pessoa se identifique e assuma o que
disse ou escreveu. O anonimato anula a validade da expressão, ainda que
ela contenha méritos, pois sugere que o autor não tem dignidade e
nobreza. Também denota que essa manifestação não vem acompanhada da
necessária responsabilidade pelo ato praticado.
Contradizer e respeitar
Em
sociedades multiculturais e plurais, pensamentos, crenças e convicções
que são livremente expressos podem contrariar ou contraditar outros
pensamentos, crenças e convicções quanto aos valores morais, crenças
religiosas e preferências pessoais. Tais discordâncias, todavia, não
podem ser vistas como formas de se denegrir a honra e a imagem dos
indivíduos de quem se discorda. Se assim fosse, seria impossível a
discussão de ideias e a apresentação do contraditório, especialmente no
ambiente da Universidade. De acordo com os princípios da fé cristã, o
amor a Deus e ao próximo são os maiores deveres de cada ser humano.
Amar ao próximo significa respeitar o nome, os bens, a autoridade, a
família, a integridade e a reputação das pessoas, independentemente das
convicções religiosas, políticas e pessoais delas. Os cristãos podem
discordar das pessoas e ainda assim manifestar apreço e respeito por
elas. Quando cristãos deixam de amar as pessoas ao seu redor, estão
violando um dos preceitos mais conhecidos de Jesus Cristo, que é amar
ao próximo como a si mesmo. Os cristãos, na verdade, devem ir além e
amar inclusive os seus inimigos, conforme o próprio Jesus ensinou
(Mateus 5.44).
Livre mas não neutra
Em
tudo isso, há outro elemento que não pode ser ignorado, o fato de que o
ser humano, usando suas liberdades acima descritas, resolveu tornar-se
independente de Deus e viver uma vida autônoma. O livro de Gênesis
(3.1-24) registra esse momento, que na teologia cristã recebe o nome de
"Queda", termo que indica que essa busca de autonomia implicou em uma
caída daquele estado original de liberdade de consciência e expressão.
Não que o homem tenha perdido essas liberdades – ele ainda as mantém.
Só que tanto a sua consciência quanto a sua capacidade de julgar e
escolher entre o bem e o mal, tendo abandonado a Deus como referencial,
são inclinadas ao mal, ao erro, ao egoísmo. E como decorrência, sua
expressão, embora livre, reflete essa tendência ao mal. Uma das
manifestações do impacto da Queda na liberdade humana é a tendência de
se procurar suprimir a liberdade dos que discordam de nós. Os que
professam a fé cristã devem reconhecer que todas as pessoas, inclusive
aquelas que não acreditam em Deus e que têm práticas contrárias à ética
cristã, têm o direito fundamental de pensar e acreditar no que
quiserem e de viver de acordo com suas crenças. Os cristãos entendem
também que se manifestar contrariamente ao que pensam e fazem essas
pessoas não é incitamento ao ódio, mas o exercício desse mesmo direito
fundamental. Aqui citamos o dito de Voltaire, "não concordo com uma só
palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte vosso direito de
dizê-lo."2 Essa frase fala tanto do direito que temos de
discordar dos outros quanto do direito que os outros têm de discordar
de nós, direitos pelos quais deveríamos estar dispostos a lutar, uma
vez que, perdidos, deixam a todos amordaçados.
LIBERDADE, RESPONSABILIDADE E CIDADANIA
Como
Universidade confessional, o Mackenzie busca, conforme seu Estatuto,
"a adoção de um Código de Ética baseado nos ditames da consciência e do
bem, que reflitam os valores morais exarados nas Escrituras Sagradas,
voltados para exercício crítico da cidadania" (Artigo 3º). Os termos do
artigo citado frisam as bases da visão ética dessa Escola em prol da
preservação da dignidade do homem: a iluminação pela Palavra de Deus e a
consideração da consciência para o exercício livre de sua manifestação
na sociedade. Ao mesmo tempo, o Mackenzie também respeita a
consciência de cada um de seus alunos, como diz o Estatuto, "A
assistência espiritual à comunidade universitária, respeitada a
consciência de cada um, é proporcionada pela Capelania Universitária,
em conformidade com a natureza confessional presbiteriana" (Estatuto,
Artigo 67). Liberdade de consciência e de expressão são privilégios do
ser humano por direito de criação. Jamais podemos abrir mão deles sob
risco de diminuirmos nossa humanidade e a imagem de Deus em nós.
__________________
1MILTON, John, Areopagitica: Discurso pela Liberdade de Imprensa ao Parlamento. Editora Topbooks, 1999. Rio de Janeiro, RJ.
2Voltaire
(François Marie Arouet, 1694-1778), um dos mais famosos filósofos do
Iluminismo, ficou conhecido por sua batalha incessante em prol das
liberdades civis, especialmente da liberdade religiosa.
Rev. Dr. Augustus Nicodemus Lopes
Chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie
Agradecemos a todos que colaboraram na confecção desta Carta de Princípios.
OBRAS RECOMENDADAS
ALTHUSIUS, Johannes. Política. Rio de Janeiro: TopBooks, 2003.
ASH,
Timothy Garton. Nós, o Povo: a Revolução de 1989 em Varsóvia,
Budapeste, Berlim e Praga. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
BARBOSA, Rui. A Imprensa e o Dever da Verdade. São Paulo: Com-Art, 1990.
HAVEL, Václav. Entrevista a Distância. São Paulo: Siciliano, 1991.
KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.
MILTON, John. Areopagitica: Discurso pela Liberdade de Imprensa ao Parlamento. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.
ORWELL, George. A Revolução dos Bichos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
POLANY, Michael. A Lógica da Liberdade. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.
SCHAEFFER, Francis. "Um Manifesto Cristão" in: A Igreja no Século 21. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 157-239.
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