Para Quem Pensa Estar em Pé (II)
Embora eu tenha sido
criado num lar presbiteriano e numa igreja presbiteriana onde as
doutrinas características do presbiterianismo reformado eram pregadas
com certa regularidade, revoltei-me contra essas doutrinas quando
retornei ao Evangelho em 1977, depois de vários anos afastado de Deus e
da Igreja. Influenciado pela leitura das obras de Charles Finney e
João Wesley, combati a ferro e fogo, com zelo de novo convertido, não
somente os cinco, mas todos os pontos do calvinismo.
Foi
um batista reformado, Charles Spurgeon, com sua exposição bíblica da
doutrina da eleição, quem abriu meus olhos para que eu passasse a
aceitar com regozijo a fé reformada. Faminto, passei a devorar a
literatura reformada disponível. Mais tarde, fazendo meu mestrado na
África do Sul, conheci a obra de Martyn Lloyd-Jones e dela para a
literatura puritana, foi um breve salto.
Amo
a literatura produzida pelos antigos puritanos. Sólida, bíblica,
profunda, muito pastoral e prática. A santidade defendida e pregada
pelos puritanos aqueceu meu coração e se tornou o ideal que eu decidi
perseguir até hoje. Um breve resumo do pensamento puritano sobre a
santidade está na Confissão de Fé de Westminster, no capítulo
SANTIFICAÇÃO:
I.
Os que são eficazmente chamados e regenerados, tendo criado em si um
novo coração e um novo espírito, são além disso santificados real e
pessoalmente, pela virtude da morte e ressurreição de Cristo, pela sua
palavra e pelo seu Espírito, que neles habita; o domínio do corpo do
pecado é neles todo destruído, as suas várias concupiscências são mais é
mais enfraquecidas e mortificadas, e eles são mais e mais vivificados e
fortalecidos em todas as graças salvadores, para a prática da
verdadeira santidade, sem a qual ninguém verá a Deus.
II.
Esta santificação é no homem todo, porém imperfeita nesta vida; ainda
persistem em todas as partes dele restos da corrupção, e daí nasce uma
guerra contínua e irreconciliável - a carne lutando contra o espírito e
o espírito contra a carne.
III.
Nesta guerra, embora prevaleçam por algum tempo as corrupções que
ficam, contudo, pelo contínuo socorro da eficácia do santificador
Espírito de Cristo, a parte regenerada do homem novo vence, e assim os
santos crescem em graça, aperfeiçoando a santidade no temor de Deus.
Era
esse conceito de santificação que eu gostaria de ver difundido como
sendo o conceito reformado. Contudo, recentes influências dentro do
campo reformado, algumas delas chamadas de “neopuritanismo”, têm criado
alguma confusão sobre o assunto.
Conforme escrevi num post anterior,
o termo “neopuritanos” tem sido usado para designar os adeptos de um
movimento recente no Brasil que inicialmente visava apenas resgatar a
literatura dos puritanos e difundir seus ensinamentos em nosso país.
Com o tempo, o movimento passou a usar determinadas doutrinas e
práticas como identificadoras dos verdadeiros reformados, tais quais o
cântico exclusivo de salmos sem instrumentos musicais no culto, o
silêncio total das mulheres no culto, a interpretação de “o perfeito”
em 1Coríntios 13.8 como se referindo ao cânon do Novo Testamento
(posição contrária à de Calvino), uma aplicação rigorosa e inflexível
do princípio regulador do culto e outros distintivos semelhantes. Nem
todos os que adotam alguns destes pontos podem ser considerados
neopuritanos, para ser justo. Mas, sempre há o grande risco de que se
caia na tentação de associar a santidade com esses pontos. Sinto que os
seguintes comentários poderiam ajudar a esclarecer o assunto.
1. A santidade deve ser buscada ardorosamente sem, contudo, perder-se de vista que a salvação é pela fé, e não pela santidade –
Muitos seguidores modernos dos puritanos tendem à introspecção e a
buscar a certeza da salvação dentro de si próprios, analisando as
evidências da obra da graça em si para certificar-se que são eleitos.
Não estou dizendo que isso está errado. A salvação é pela fé e, no meu
entendimento, a certeza dela está ligada ao processo de santificação.
Contudo, puritanos de todas as épocas correm o risco de confundir as
duas coisas. Se a busca contínua pela santidade não for feita à luz da
doutrina da justificação pela graça, mediante a fé, levará ao desespero,
às trevas e à confusão. Quanto mais olhamos para dentro de nós, mais
confusos ficaremos. “Enganoso é o coração, mais que todas as coisas; e
desesperadamente corrupto, quem o conhecerá?” (Jeremias 17.9) Não estou
descartando o exame próprio e a análise interior de nossos motivos.
Apenas estou insistindo que devemos fazer isso olhando para Cristo
crucificado e morto pelos nossos pecados. Somente conscientes da graça
de Deus é que podemos prosseguir na santificação, reconhecendo que esse
processo é evidência da salvação.
2. A santidade não se expressa sempre da mesma forma; ela tem elementos culturais, temporais e regionais –
Sei que não é fácil distinguir entre a forma e a essência da
santidade. Para mim, adultério é pecado aqui e na China,
independentemente da visão cultural que os chineses tenham da
infidelidade conjugal. Contudo, coisas como o uso do véu pelas mulheres
me parecem claramente culturais. Quero insistir nesse ponto. A
santidade pode se expressar de maneira contemporânea e cultural, não
está presa a uma época ou a um local – Sei que muitos modernos
puritanos negarão que desejam recuperar o estilo dos antigos puritanos
da Inglaterra, Escócia, Holanda e Estados Unidos. Contudo, pontos como a
insistência no uso do véu, no silêncio absoluto das mulheres no culto,
no cântico de salmos à capela, na extrema seriedade dos cultos e do
comportamento, a aversão ao humor, me parecem muito mais traços de uma
época já passada do que essenciais teológicos. Especialmente quando a
argumentação exegética para defendê-los carece de melhor fundamentação.
3. A santidade pessoal pode existir mesmo em um ambiente não totalmente puro –
Eu acredito que chega um momento em que devemos nos separar daqueles
que se professam irmãos, mas que vivem na prática da iniqüidade
(1Coríntios 5). Não creio que devamos sacrificar a verdade no altar da
pretensa unidade da Igreja. Se queremos a santidade, devemos estar
prontos para arrancar de nós o olho, a mão e o pé que nos fazem
tropeçar. Contudo, creio que há um caminho a ser percorrido antes de
empregarmos a separação como meio de preservar a santidade bíblica. Sei
que os santos são chamados a se separar de todo mal, inclusive dos
pecadores (Salmo 1). Mas a separação bíblica é bem diferente daquela
defendida por alguns puritanos modernos, que têm dificuldade de conviver
inclusive com outros reformados dos quais discordam em questões que
considero absolutamente secundárias. Podemos ser santos dentro de uma
denominação ou de uma igreja local que não sejam, de acordo com as
marcas da Igreja, uma igreja completamente pura. Sei que não é fácil,
mas teoricamente posso ser santo dentro de Sodoma e Gomorra. Posso ser
santo na minha denominação, mesmo que ela abrigue gente de pensamento
divergente do meu. Não preciso necessariamente me separar como
indivíduo para poder ser santo, especialmente se as alternativas de
associação forem raras ou inexistentes.
4. A santidade pode ocorrer mesmo onde não haja plena ortodoxia –
Sei que esse ponto é difícil para alguns puritanos modernos. Por
incrível que pareça, a tolerância e a misericórdia marcaram os puritanos
ingleses do século XVII. Foi somente a fase posterior do puritanismo
que lhe deu a fama de intolerância. John Owen, o famoso puritano, pregou
em 1648 um extenso sermão no Parlamento Britânico, na Câmara dos
Comuns, intitulado “Sobre Intolerância”, no qual defendeu, mais uma vez,
a demonstração do amor cristão e a não-intervenção dos poderes
governamentais nas diferenças de opiniões eclesiásticas (Works,
VIII, 163-206). O neo-puritanismo tende a ver com desconfiança a
genuinidade da experiência cristã de arminianos e pentecostais. Para
mim, a graça de Deus é muito maior do que imaginamos e o Senhor tem
eleitos onde menos pensamos. Assim, creio que exista santidade genuína
além do arraial puritano. Não estou negando a relação entre doutrina
correta e santidade. O Cristianismo bíblico enfatiza as duas coisas como
necessárias e existe uma relação entre elas. Contudo, por causa da
incoerência que nos aflige a todos, é possível vivermos mais santamente
do que a lógica das nossas convicções teológicas permitiria. Cito Owen
mais uma vez:
A
consciência de nossos próprios males, falhas, incompreensões,
escuridão e o nosso conhecimento parcial, deveria operar em nós uma
opinião caridosa para com as pobres criaturas que, encontrando-se em
erro, assim estão com os corações sinceros e retos, com postura
semelhante aos que estão com a verdade (Works, VIII, 61).
Acredito que a teologia reformada é a que tem melhores condições de
oferecer suporte doutrinário para a espiritualidade, a santidade e o
andar com Deus. Os reformados brasileiros são responsáveis por mostrar
que a teologia reformada é prática, plena de bom senso, brasileira e
cheia de misericórdia.
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