Para Quem Pensa Estar em Pé (III)
Começo
recordando o que já disse aqui no blog (faz tempo!) sobre a
neo-ortodoxia (veja os links para os posts ao final). Ela foi uma
tentativa de síntese entre a ortodoxia da Igreja e o liberalismo
teológico no século passado, síntese em que não somente o liberalismo
perdeu sua força, como também a própria ortodoxia, que já não seria a
mesma. Contudo, a neo-ortodoxia continuou a se apresentar usando os
termos e o vocabulário da ortodoxia histórica, embora com conteúdo
diferente e que pouca coisa tem em comum com a ortodoxia histórica da
Igreja. Aos neo-ortodoxos brasileiros eu diria o seguinte quanto à
necessidade de santificação.
1. A santidade é visível aos olhos humanos
– Ela não acontece nas regiões celestiais apenas, no âmbito das
relações invisíveis entre os crentes e Deus. Se por um lado já fomos
santificados e glorificados em Cristo nas regiões celestiais – coisa que
não podemos sentir nem ver – somos exortados a nos santificar
diariamente pela mortificação da natureza pecaminosa e pelo revestimento
das virtudes cristãs (cf. Colossenses 3.1-6). A neo-ortodoxia tem a
tendência de colocar como transcendentes as manifestações práticas e
visíveis da operação da graça de Deus no ser humano, interpretando
conversão e santificação em termos psicológicos, apenas. Talvez seja por
esse motivo que alguns neo-ortodoxos – note que não estou
generalizando – consideram como sem importância fazer sexo antes do
casamento, ir aos bailes e baladas, separar-se e casar de novo mais de
uma vez, e usar palavrões e linguagem chula. Eles acabam esvaziando de
sentido as declarações bíblicas sobre a necessidade diária e prática de
uma vida separada do pecado e apegada aos valores cristãos.
2. A santidade é sinal da eleição
– Muitos neo-ortodoxos negam isso, afirmando que os puritanos
modificaram a doutrina da segurança da fé ensinada por Calvino. Os
puritanos, com seu legalismo, teriam conectado a certeza de salvação à
santidade e não á fé salvadora, como Calvino supostamente acreditava.
Essa tese falsa já foi convincentemente refutada por muitos autores
(recomendo o artigo de Paulo Anglada na revista Fides Reformata).
Não precisamos dos puritanos para ver que a Bíblia ensina claramente
que fomos eleitos para a santificação, e que sem santificação, ninguém
verá ao Senhor (Hb 12.14). A santidade de vida – não estou falando de
perfeição – é parte integrante da fé salvadora (Romanos 6). Santidade e
fé salvadora são dois lados de uma mesma moeda. Tiago que o diga: “Fé
sem obras é morta”. E no contexto, ele não estava falando de dar
esmolas, mas de obedecer a Deus mesmo ao custo do que nos é mais
precioso, como os exemplos de Abraão e Raabe demonstram (Tiago 2).
Deixando de considerar a santificação como sinal da eleição para a vida
eterna e adotando a fé como esse sinal, adotam uma base subjetiva para a
segurança de salvação e correm o risco de se enganarem quanto à sua
experiência religiosa, pois desta forma, podem se considerar salvos
mesmo que não haja sinais visíveis da santificação entre eles.
3. A santidade é experimental
– com isso quero dizer que podemos experimentá-la. Podemos viver,
sentir e experimentar a vitória sobre as tentações interiores e
exteriores. Sentimos e experimentamos grande gozo, alegria e deleite nas
coisas de Deus. Sei que muitos vão se espantar com isso, mas declaro
acreditar que reações físicas como tremer, chorar, emocionar-se, são
perfeitamente válidas, se são resultado da pregação da Palavra de Deus
na mente e no coração. Neo-ortodoxos tendem a considerar toda
manifestação religiosa emocional como pentecostalismo, esquecidos de que
a tradição reformada à qual dizem pertencer reconhece que a ação
graciosa do Espírito na santificação por vezes produz efeitos profundos
em nossa estrutura emocional. Eu sou contra emocionalismo e a
manipulação e exploração das emoções. Mas, já chorei de alegria diante
de Deus ao meditar na sua graça, já solucei amargamente, prostrado, por
causa dos meus pecados, já senti uma paz que ultrapassa qualquer
descrição ao enfrentar grandes tentações. O processo de santificação
inevitavelmente passa pelas emoções – não é somente uma coisa da mente. E
isso não é pietismo e nem pentecostalismo, como geralmente os
neo-ortodoxos pensam.
4. A santidade precisa da prática devocional
– Eu ainda acredito, depois de todos esses anos de crente, de pastor e
professor de interpretação bíblica, que a leitura bíblica diária,
junto com meditação e oração a Deus, são meios indispensáveis para nos
santificarmos (Salmo 1). Não sei como muitos conseguem passar dias e
dias sem ler a Palavra de Deus, sem meditar nela e buscar a Deus em
oração. Quando por algum motivo deixo de fazer minhas devoções diárias,
sinto o velho Adão fortalecer-se dentro em mim. Perco a alegria e o
deleite na oração. Meu coração começa a se endurecer, meus sentidos
espirituais começam a se embotar. O pecado deixa de ser odioso e começa
a ser mais atraente. Eu nunca havia entendido até alguns anos passados
porque neo-ortodoxos adotam uma ordem de culto extremamente litúrgica.
Hoje, penso que descobri. Se não temos prática devocional e se tiramos
o poder prático do Evangelho em nossas vidas, temos de transferir a
dinâmica da santificação para outra esfera – e no caso, um culto
extremamente formal e litúrgico. Não sou contra um culto litúrgico. Sou
contra o “liturgismo” que aparece como substituto de uma vida
devocional diária e do processo de santificação.
5. A santificação pressupõe que Deus fez e faz milagres neste mundo –
A santificação bíblica pressupõe a realidade de três milagres.
Primeiro, a vitória de Jesus sobre o pecado e a morte, mediante sua
ressurreição física, literal e histórica de entre os mortos. É somente
mediante nossa união com o Cristo ressurreto e exaltado que temos o
poder para vencer o pecado em nós. Segundo, a operação do Espírito
regenerando o pecador, dando-lhe uma nova natureza e implantando nele o
princípio da nova vida em Cristo. Sem regeneração, não pode haver
santificação. A velha natureza pecaminosa não pode santificar-se. É
preciso uma nova natureza e somente um ato miraculoso, criador, de Deus
a implanta no pecador. Terceiro, a ação da Providência de Deus, que
diariamente impede que sejamos tentados mais do que podemos resistir,
subjugando Satanás, subjugando nossas paixões e nos mantendo no caminho
da santidade. A neo-ortodoxia tende a lançar todos os atos miraculosos
de Deus para a heilsgeschichte, um nível de existência que eles
inventaram, que é fora desse mundo. Portanto, quem realmente não crê
na ação miraculosa de Deus na historie, no mundo real, não conhece o que é a regeneração, a união mística com Cristo e a vitória diária sobre o pecado.
6. A santificação precisa de referenciais morais objetivos e fixos --
Sem eles, a santificação descamba para o misticismo, pragmatismo, e
paganismo. O referencial seguro do caminho da santidade é a Palavra de
Deus, nossa única regra de fé e prática. Ela é lâmpada para meus pés e
luz para meus caminhos (Salmo 119.105). A neo-ortodoxia vê a Bíblia, não
como a Palavra de Deus, mas como o testemunho humano escrito e falível
a essa revelação. Deus só me fala pela Bíblia num encontro
existencial, cujo conteúdo será determinado pela minha necessidade
naquele momento. Fica difícil dizer não ao pecado, mortificar as
paixões, rejeitar as tentações, buscar a verdade, a pureza e a justiça
quando não temos certeza que essas coisas são certas e que são a
vontade de Deus para nós a todo momento. Uma Bíblia falível, muda,
cheia de erros, é um guia inseguro e não-confiável na senda do
Calvário.
“Segui a paz com todos e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor” (Hebreus 12.14).
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